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O BROCHE. - Mario Augusto Machado Pinto


O BROCHE.
Mario Augusto Machado Pinto

Sergio, “amigo do peito” há mais de vinte anos, me telefonou pedindo ajuda para solucionar situação constrangedora acontecida em seu clube Itapolo: alguém – não me foi dito o nome – falou em perda de valioso enfeite. Reviraram as instalações e não encontraram o dito cujo. Seu tom de voz, qual roteador, emitia sinais de sintonia com a máxima tristeza e preocupação. Sequer me disse Boa Tarde.

— Chiaro, chiaro. Vou logo mais à noitinha. Deixa uma vaga na sua garagem. Vou direto para o quarto de hospedes.  Ali nos encontraremos. Ali. Não quero que nos vejam juntos quando eu chegar.  Ahn, também janto aí e nos falamos. Tchau. Ah, faz um croqui da ocupação dos quartos.
Esqueci de perguntar quem estava lá.

Enquanto dirijo a “van” assinalada e com os lampejos a funcionar, rememoro: Sergio é o que popularmente se classifica como “uma boa alma”. Somos amigos desde a primeira hora de aula na faculdade. Participamos das mesmas brincadeiras, juntos fizemos bobagens enormes às quais somente os jovens se permitem.  Devido nossa atividade – ele, hospedeiro e eu delegado de policia - guardamos conveniências, mas nunca tivemos e ainda não temos mistérios entre nós e nos encontramos sempre que possível. Pelos casos encrencados que resolvi, ele me considera verdadeiro Poirot. O seu Itapolo é clube chiquérrimo. O nome assinala: ali se pratica polo e competições equestres. É frequentado pelo “crème de la crème” da sociedade paulistana e por chupins que incensam  as estrelas dos jogos e as celebridades da sociedade no momento. Acontecida essa perda e por ela Sergio pedido minha ajuda é sinal de que, não resolvida, a notícia poder ter repercussão prejudicial aos seus negócios. Vamos lá, a causa é boa. É de um amigo!

Pelo celular avisei que estava chegando. Conhecendo o caminho, apaguei as luzes e entrei na descida para a garage já com o motor em ponto morto. Sergio me esperava. Não era para estar ali. Semblante exibia preocupação. Cumprimentamo-nos. Sem nada dizer, fomos direto para o quarto de hospedes.

Entramos e “matei o agrado“ na hora: mesa posta para dois, comida no “réchaud” (pelo cheiro só podia ser ragu de cordeiro ao molho de hortelã, meu prato predileto), vinho tinto Pinot  Noir e um branco no balde de gelo além de sorvete de três sabores nos aguardavam.

Enquanto me colocava a vontade, pedi ao Sergio para me dizer o que aconteceu.
 A nossa amiga Dulce Lisboa, agora Borges, me contou que para o fim de semana veio com dois broches: um, simples, de ouro, estava usando; outro, de platina e pedras, maior valor, era o desaparecido. Tinha certeza absoluta: não o havia perdido.

 Ah, Dulcinha querida. Gosto desta guia amorosa da nossa juventude, amiga para ajuda em qualquer tempestade. Sergio, não era pra você me esperar lá embaixo na garage. Era aqui. Cadê a Dinah?

 Ah, não seca. Está no Rio, com a mãe. Pois é, Dulce me procurou no gramado, rodeou, rodeou e falou meio constrangida sobre o acontecido. Está chateada, coitada, ainda mais por ter acontecido aqui. Tá murcha aquela exuberância toda que você, seu malandro, aprecia até hoje. Guy tá p da vida.

 Sergio, não faz comentário fora do assunto. Fizeram varredura no quarto dela, no banheiro, por debaixo dos móveis, cantinhos das paredes?  Atrás dos quadros? Completa? E nos outros?

 Sim. Não encontramos nada, nem nas lixeiras. Justifiquei dizendo que procurávamos um anel. Sozinho, eu mesmo peguei ferramentas, tirei o sifão da pia e o filtro central dos encanamentos, inclusive da banheira. Serviu para limpar. Estava precisando. Para não despertar curiosidade não fizemos nada nos outros.

 Hoje, notaram algum sinal dos empregados, alguém olhando muito para você, olhares curiosos, dissimulados ou como que de vergonha, mexendo as mãos como quem faz um embrulho? Comportamento normal? Falaram ou comentaram?

— Não, quer dizer, tudo normal e nada foi comentado nem perguntado aguardando sua chegada.

— Você, Sergio, viu o broche? Dulce mostrou antes?

— Não, mas ela me disse ser presente – ela falou regalo - do Borges. Lembra-se dele? – iria estrear amanhã no jantar. Queria mostrar, causar inveja. Sabe como é.

— Bem, Sergio dos meus amores, vamos papar, beber, fofocar e dormir. Por falar em papar: tem alguém solta por aqui? Não? “Oyah, mala cueva”. O programa de divertimentos vai ser igual aos anteriores? Conta as últimas fofocas. Quem com quem? 

Enquanto comíamos, tentei manter conversa, mas não deu. Sergio estava acabrunhado, sem vontade de fofocar. Fomos dormir com aquele sentimento estúpido de vazio no peito.

Minha suíte é um pouco afastada das outras quatro que são unidas como casas geminadas, disponibilizadas somente para importantes personagens; como ainda não é época dos torneios Sergio nelas colocou nossos amigos,  convidados da Dulce e do Guy. Formam um semicírculo unido a um salão usado para recepção Quando necessário funciona como “cafeteria” e restaurante, como agora. Tem ligação camuflada com a arena de prática e competição de adestramento. As cocheiras ficam afastadas.  Nas temporadas o pessoal vai para o hotel local.

Pelo croqui feito pelo Sergio, nossos amigos estão colocados da esquerda para a direita: Dulce – Guy Borges; Alice “três maridos” – Hélio de Souza; Laerte Norton - Ana; Rodrigo Alves  -“caso” da Dulce – Fernanda, a dadona, gostosona , conhecidos, menos o Hélio de Souza, do qual pelo SPhone pedi informações ao Serviço Reservado da Polícia. Resposta: tinha ficha de trambiqueiro. Alice, explosiva, gozadíssima e “pra frentex”, milionária após herdar tudo dos três maridos falecidos, só tem companhias de caráter duvidoso. Mais um? Não era de admirar.

Bem dormido, apresentei-me às sete horas para o café da manhã e fui avisado que só abririam às oito.

— Bem, então fico naquela mesa de canto virada para a entrada.  Vamos lá. Enquanto espero, faça o favor de me trazer depressa um café, o jornal e um copo d’água bem gelada... Dei risada, mas o atendente fez cara de quem não entendeu...

Espera que te espera:  o “pessoal bem” come e se diverte tarde...

Aí, estão chegando. Que turminha bacana, principalmente as mulheres. Tenho conhecimento de causa: pra mim, são o quarteto italiano: Dulce, a Sofia; Alice, a Ana Magnani; Fernanda, a Claudia Cardinali; Ana, a Gina Lolobrigida. Elas sabem. Eu disse pra elas.
Cumprimentos gerais.

— Você aqui? Que surpresa! Sergio não avisou, exclama Dulce.
— Vim passear e encontrei vocês. É ótimo!
— Que bacana! Já tomou café? Já? Que horror! - comenta Fernanda.
— Senta aqui na nossa mesa e vamos papear. Você sabe o programa pra hoje? - pergunta Ana.
— Sentiu frio? Te jogaram da cama? Cadê tua menina? - pergunta Alice.
— Vim só.
— Você, só? Não acredito. Tá doente! - grita Fernanda
— Cadê o jornal? Menino, rápido, busca o jornal - falo eu.
O garoto sai em disparada.

Todo mundo olha para todo mundo. As mulheres se examinam conferindo formas e detalhes. Elas se gostam. Os homens as observam, aguardam minha reação ao vê-las tão apetitosas, algum gesto por menor que seja já que sou solteiro, abençoado pela natureza e sabem que às vezes cumpro deveres de maridos ausentes e sempre deixo saudades. Aceitam-me, mas não me topam muito.

A conversa vai ao sabor do que dá. É falatório descompromissado, todos falam ao mesmo tempo, todos se entendem. São amigos, conhecem e perdoam os pecadilhos de cada um.

Sergio, com melhor figura, apareceu pedindo aprovação ao programa que preparou para o dia:  pela manhã, quer dizer, antes do almoço, show de adestramento – haverá presença de cavaleiros e algumas pessoas da cidade; almoço; soneca; percorrer trilha conhecida; chá; sonequinha; jantar e com a participação de poucas pessoas da cidade, bingo e palhaço; final ainda por confirmar. “Surprise”.

Combinei com Sergio que pela manhã eu faria uma vistoria nos quartos objetivando encontrar pista para encontrar  o broche,  e ele foi formidável afastaria o pessoal: todos gostam de exibição de adestramento.  Deu-me uma cópia da chave mestra dos quartos e por hora e meia manteria os empregados ocupados com outras tarefas.

— Bem, vou indo para o galpão. Quero ter um bom lugar, falei alto para todos ouvirem.

No caminho mudei de rumo e fui aos quartos. Estavam com o cheiro da mulher ocupante – delicia -  bem arrumados, banheiros limpos e pertences nos seus devidos lugares. Pela minha prática, a vistoria foi detalhada. A arrumação ajudou e facilitou muito.

Voltei ao picadeiro e sinalizei ao Sergio que, como combinado, ia à cidade. Por gestos perguntou O.K? Respondi mexendo os braços e as mãos para cima e para baixo: vamos ver. Entendeu?

Foi fácil encontrar e contratar o palhaço indicado pelo Sergio. Alto, ágil, logo disse o que podia fazer e compartilhar com a plateia, independentemente da quantidade de pessoas. Expliquei que tinha liberdade de ação, mas uma exigência a cumprir: o tempo de desempenho tinha de ser de hora e meia pelo menos. Junto com ele contratei ajudante e ”stand girl” bem charmosa. Almoçamos juntos, expliquei o que queria e como. Ao palhaço dei instruções detalhadas em separado. Voltamos todos ao Itapolo. Arrumamos tudo, ensaiamos até obter automatismo no trabalho de todos. Deixei-os no salão, fui para meu quarto e dormi.

Às oito e meia fiz a apresentação do espetáculo dando inicio ao bingo com renda para a creche da prefeitura. Às dez iniciou-se o show de palhaçadas e “mágicas”. Ambas as atividades tiveram a participação entusiasta da plateia; foi sucesso enorme colhendo longos aplausos e pedidos de “bis”. Ao palhaço reafirmei minhas instruções. Quando iniciou conversa com “minhas italianas” aproveitei a empolgação e na “titiquela” voltei à cidade para me divertir um pouco e foi justo quando ele começou a falar com  “minha Sofia”.

Voltei pela manhãzinha e estava preparando o carro para ir embora quando Sergio apareceu apressado perguntando todo afobado:

– Onde o Sr. pensa que vai? Não vai embora, não senhor. Tem que explicar como é que conseguiu encontrar o broche e devolver para a Dulcinha. Vamos ao bar e me conta tudo direitinho desde o começo com a procura nos quartos.

— Bem, comecei, tendo pouco tempo, resolvi jogar na experiência e na sorte: fui de quarto em quarto procurando o broche nas embalagens de maquiagem das mulheres e nas bolsas dos homens. Operação  delicadíssima. Imaginou se deixo cair um vidro de loção ou creme? Numa frasqueira, no puro palpite, faro de policial, encontrei um estojo com massa de “pancake” nova, sem uso, mas toda trincada; instintivamente levantei os pedaços do pó compacto e lá estava o broche. Retirei o broche com máximo cuidado e coloquei uma moeda de R$1,00 no lugar, embaixo da base para levantar um pouquinho os pedaços, tudo feito como se estivesse desarmando uma carga explosiva; cheguei a transpirar. Fiquei com ele e fui à cidade. Acenei pra você. Lembra?

— E ai?

— Fui atrás do palhaço combinando acrescentar ato em que deveria tirar cartas de baralho, carteiras, relógios e pulseiras, entreter com boas demonstrações. Ali mesmo o cara provou que era bom: devolveu meu relógio que tirou quando cheguei e nos cumprimentamos.

— E foi assim mesmo?

— Foi. Direto e simples. No momento certo indiquei a Dulcinha pra ele pegar o broche e “tirar detrás da orelha” e com uma mesura, colocar nas mãos dela, no colo. Ele fez tudo como combinado. Bacanérrimo!

— Sabe, ela gritou, riu e pulou de alegria! Beijou o palhaço! Lembra? Cantou a “bagatelle” Für Elize. Trá, lá ,rá,lá, rá! Porca miséria, só você pra conseguir isso!

— Ué, não era isso que você queria? Foi feito.

— É, mas me conta, conta aqui só pra nós dois que ninguém escuta: frasqueira de quem?

— Ora Sergio. Até parece que você não me conhece. Isso fica aqui comigo e ninguém rasga!

— Desculpe. Agora, sério mesmo: o importante foi ter o problema solucionado a contento. Nem sei como agradecer...

— Ué, então não agradece e, se me permite, me voy, me voy a tierras lejanas... Tchau belo.

Estático, Sergio vê o amigo rapidamente entrar na “van”, ligar o rádio e a sirene, acelerar lançando pedrisco para todos os lados e sumir na direção da junção com a Via dos Bandeirantes.




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