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HOMERO e FÊ - Mario Augusto Machado Pinto.


HOMERO e FÊ.
Mario Augusto Machado Pinto.


Dirigindo depois de um dia de trabalho Homero sente-se cansado. Não gosta de guiar à noite. É que o “Adolfo” - o Fusca – pelas consequências da idade não é muito confiável, empaca quando mais se precisa dele. Em noite com neblina cerrada, como hoje, fica difícil dirigir, a luz dos faróis é fraca, mal dá para enxergar cinco metros à frente. Está com catarata, diz em gozação. Gostoso é dirigir quando a madrugada já escorregou da noite para a manhã e ele vai ao escritório, vendo as cores da nossa Bandeira: o verde do canavial, o amarelo do milharal, o azul do céu, o branco de uma nuvem e a estrela matutina brilhando lá no horizonte. Eta coisa bonita!

Vez ou outra cruza com os cortadores de cana, “boias-fria”. Conseguiu aquecedor para esquentar a comida deles, tem planos de montar um pequeno estrado móvel com tanque de água para o pessoal lavar o rosto e as mãos, mas os “gatos” não querem porque isso atrasaria a volta pra vila. Ninguém reclama. Acham que está bom e na sua santa ignorância, aceitam. Vivem lado a lado com ela e o medo de perder o posto. Lembra da canção “Eh ôô vida de gado, povo marcado, povo feliz”...

Homero vai dirigindo bem devagar, sentindo aquele medinho, o friozinho na espinha, a respiração mais ofegante, ouvindo o tocador de CD no máximo do volume berrar a musica “As Bodas”, do Igor Stravinsky musica que nada tem a ver com ele. Pra ficar atento conversa aos berros com a Fê.

-Então, caçoam os amigos, tem medo de dirigir à noite?
-É verdade, responde, tenho medo, sim.

Antes não era assim, lembra Fê? Você tornava tudo alegre, gostoso. Eu era caladão, mas conseguiu abrir minha boca e um dia contei meus planos de vida pra nós dois. Pedi para cumprir juntos. Dureza pra conseguir, mas cumprimos. Sempre alegre, irradiava alegria e felicidade quando namoradinhos. Andávamos de mãos dadas, apertando os dedos, tocando os ombros, olhando olhos nos olhos. Quando a gente voltava do cinema, de um jantar com os amigos ou de uma festinha você comentava tudo de todos, até de nós mesmos. Como era bom.  Eu esquecia que guiava à noite, imagina!

Esse tempo passou desde quando você ficou doente. Nossos filhos não vinham mais almoçar todos os domingos, os netos não queriam ouvir estórias, iam ao cinema. Ai, Fê, ai.  Eu ficava triste com isso e com sua doença. Fiquei desesperado quando ouvi você falar depois de repetir três vezes que queria falar comigo, que nos deixaria, mas que voltaria quando eu estivesse preparado. Foi horrível. A santidade toda devia ter impedido isso. Aconteceu e desde então levo uma vida meio sem rumo. Pra você saber – ora, claro que sabe – só sinto sua falta. Não me importo mais com amigos, filhos ou netos. Sempre me pergunto: quando vou estar preparado?

Acho melhor parar no acostamento da estrada. A catarata dos faróis piorou e não vejo direito.         
Pois é, Fê, tudo mudou. Não consigo acompanhar a rapidez do que acontece. Acho que vou me aposentar e criar pombos correio. Não é trabalhoso, gosto do arrulhar deles e é bonito ver a revoada no fim de tarde. 

Mas que neblina doida! Ora, desliguei o motor e ficou tudo ligado. A bateria! Tá difícil ver direito com toda essa neblina. Tá muito forte. Parece massa de suspiro. Vou desligar, é melhor, vai ficar escuro, mas não tem importância. Não, não desligo: vejo... É um vulto! Quem é que vem ai? Ai, Cristo, ai. Parece... É você Fê. Ai. Vem Fê, vem e me abraçar, me abraça bem apertado...

No dia seguinte foi fácil encontrar o “Adolfo”. Estava com a porta do motorista aberta e o vidro abaixado. Continuavam a procura do Homero.


Uma das netas comentou que o Fusca estava com o cheiro da Vó Fê.  

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