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DNA caboclo - José Vicente J. de Camargo


DNA caboclo
José Vicente Jardim de Camargo



O galo carijó cantava pontualmente todas as manhãs antes do raiar do dia. Raimundo, como se fizesse parte da ária do alvorecer,  pulava da cama já pensando no acender do fogão a lenha, no triturar dos grãos de café e na bebida quente e fumegante, passada no coador de algodão.

Sinhá, de corpo rígido e porte altivo, acompanhava o marido no despertar com o galo e ia logo acordar a filharada amontoada no segundo quarto da casinha de parede e chão de barro batido, que terminava na cozinha estendida com o puxadinho dos fundos.

Depois do asseio de bacia e caneca de alumínio na bica do poço, ia preparar a massa do biju e por a mandioca a cozinhar, que junto com o açúcar preto e o mel silvestre, era a base alimentar da família.

Raimundo, já sabendo do alvoroço da filharada em pé junto ao fogão e ao redor da pequena mesa, tomava antes em paz seu café preto, intercalado com as baforadas do cigarro de palha de fumo de corda, que o obrigava a pigarrear seguidas vezes pra desgosto de Sinhá.

Terminado o ritual, de facão na cintura e enxadão nas costas, recebia da mulher a marmita com a mandioca cozida, o biju e a inseparável garrafinha de café que o mantinha disposto pra labuta árdua na roça de milho, mandioca e feijão.

Da colheita, quase sempre mais fraca que farta, tirava o consumo da família e o que restava levava a feira dos domingos na Vila de São João onde trocava por outros alimentos e recebia de sobra alguns trocados para quitar a conta da caderneta na venda do seu Anselmo. Como nunca sobrava troco, abria nova conta fiada iniciando com a branquinha e o fumo de corda.

Foi num destes domingos que Raimundo, se intrometendo na conversa do compadre com outros feirantes, escutou pela primeira vez falar do tal exame de DNA que inicialmente pensou ser alguma meretriz da zona, já que a conversa era sobre quem seria o pai da criança...

Foi então que a sós com o compadre, ficou sabendo do que se tratava. Achou coisa do diabo, que jamais imaginara pudesse existir. São progressos da ciência, comentou o compadre.

No caminho de volta a casa, pensava se esse tal exame não pudesse esclarecer uma dúvida que tinha desde há muito tempo.

Seu filho caçula nascera com os olhinhos apertados e puxados para os lados, coisa que nos demais da prole não vingou. Preocupado que pudesse ser alguma doença, foi logo acalmado por Sinhá, que lhe disse ser algo de recém nascido e que com a idade o distorcido se consertaria por si só.

 Além do mais, a benzedeira da Vila lhe informou que o distúrbio se deu durante a prenhes e pela influência dela ter olhado muito para algum japonês. E, justamente neste período, ela ia quase todos os dias na horta do Keiko buscar verduras amanhecidas e folhas de ervas, boas para o chá de matar lombrigas que dava para os filhos mais velhos.

Raimundo se deu por satisfeito com a explicação da mulher, mas sempre que olhava o pequeno que ia crescendo, e nada do olho endireitar, lhe vinha novamente aquela pergunta a lhe atormentar por qual diabo de antepassado o raio do moleque puxou...

Sim, estava resolvido!

No próximo domingo levaria consigo a filharada toda na feira com o pretexto de ajuda-lo. Lá chegando, iria só com o menor para a Santa Casa onde o compadre lhe disse que se faz o tal exame.

Mas, e se o exame der positivo?

Que atitude vai tomar?

Uma de cabra macho e abandonar o moleque na mata cerrada da Serra da Canastra ou entrega-lo pro padre Bento para adoção, talvez por alguém da capital ou mesmo do exterior?

E Sinhá, como reagiria? Certamente iria querer sair de casa com o resto da prole, mas para onde? E viveriam como?

E ele, amaldiçoado por toda a família que trata o pequeno com o maior xodó justamente pelos olhinhos puxados, passaria a viver sozinho?

Com certeza cairia na pinga e passaria os dias no boteco do Anselmo a pedir esmolas pra curtir o vicio danado.

Neste pensa-pensa chega ao portãozinho caído da casa e logo a criançada em polvorosa se põe a gritar se trouxe os pirulitos prometidos e, dentre eles, o chinesinho, como os irmãos carinhosamente o apelidaram, se atira no colo do pai e lhe dá um beijo de estalar a bochecha.

Raimundo se recupera do estupor dos pensamentos e, do calor do abraço, lhe escapa uma lágrima que lhe renova as forças do viver e lhe arranca do peito a dúvida atormentadora.

Sinhá saindo a porta, chama todos pro rango preparado com esmero com o pouco de sempre.


Raimundo se apruma, levanta a cabeça, e com orgulho de pai manda o tal de DNA e todos os progressos da ciência tomar naquele lugar...

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