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A filha adotiva - Fernando Braga

 

A filha adotiva
Fernando Braga


Ano 1971, no dia 22 de outubro, sexta-feira ensolarada, radiante. Eu um médico dedicado à carreira universitária na própria faculdade em que me formei, doze anos atrás. Trabalhava no hospital da escola médica, em período integral. Casado há 7anos, já tinha meus quatro filhos, o ultimo nascido no final de outubro de 1970. No início da manhã deste dia, estava passando uma visita rotineira na enfermaria, junto com os residentes, onde vinte doentes estavam internados, quando de mim de aproximou uma atendente e interrompendo-me disse haver uma ligação para mim, por parte da madre Rosalice. Naquela época era comum, madres tomarem conta de hospitais, não somente na direção dos mesmos, como na pratica da enfermagem, na direção de setores como do RX, dos ambulatórios, do pronto-socorro, enfim, os cargos mais importantes, ao lado, evidentemente, de auxiliares leigos. As madres tinham nomes próprios, muitas eram estrangeiras, usavam uma veste toda branca, até os pés, uma touca cobrindo a cabeça, ficando apenas o rosto e as mãos à mostra. Esta vestimenta realçava o rosto, mostrando a beleza de algumas e a feiura de outras. Madre Rosalice estava entre elas, era muito meiga, fala mansa, muito simpática, delicada e principalmente dedicada aos muitos pacientes, que diariamente procuravam os ambulatórios do hospital. Realmente sua função principal era chefiar o ambulatório de nossa especialidade, fazer curativos e facilitar a atividade dos médicos, que junto trabalhavam.

Atendi ao telefonema da madre, que disse:

— Doutor, o senhor está muito ocupado?

— Estou sim madre, por quê?

— Porque tenho um assunto muito importante para tratar com o senhor. Estou aqui no ambulatório e preciso lhe mostrar algo.

— Muito bem madre. Vou terminar rapidamente a visita e desço para falar com você.

O ambulatório ficava no térreo, em outro prédio próximo, e lá cheguei indo diretamente à sala da madre, onde havia apenas uma mesa com duas cadeiras, e uma maca acolchoada coberta com lençol. Assim estavam compostas as quatro salas, onde eram atendidos os pacientes da neuro. Assim que entrei, ela se levantou, veio ao meu encontro e me mostrou sobre a maca, uma menina, com alguns dias de vida, enroladinha em um cobertor bem modesto. Olhei a carinha do bebe e perguntei:

— E daí madre?

— Doutor, esta é uma menininha com uma semana de vida. Sua mãe deu a luz neste hospital, chegou a amamentá-la alguns dias, mas ao tomar conhecimento de sua alta, para levar a criança, escreveu esta carta e fugiu.

Na carta e nela dizia claramente que, era do Paraná, e que não tinha a menor condição de lavar o bebe para casa, pois era solteira e extremamente pobre. Pedia encarecidamente, que tomassem conta da criança, oferecendo-a para alguém que tivesse melhores condições para criá-la. A madre então disse:

— Quando me entregaram a criança para resolver o caso, imediatamente pensei no senhor, a quem muito admiro, que conheço há vários anos, sei que é bem casado, que tem quatro filhos. O senhor não quer ficar com mais um filho? Um a mais, não vai fazer diferença. Veja bem, se o senhor não quiser, não haverá problema, pois acabou de passar por aqui o Dr.Morris, que se interessou pelo bebe. Ele tem apenas um filho e disse que poderia adota-la. Disse a ele que haveria esta possibilidade caso o sr. não se interessasse.

— Veja bem madre, não posso tomar um compromisso destes, sem uma aceitação de minha mulher!

— Como então quer fazer?

—Vou até minha casa e trazer minha esposa até aqui.

— Muito bem doutor, eu e a garotinha, ficaremos esperando aqui.

Saí do Hospital e fui pensativo para minha casa. Naquela época havia trânsito, mas não era muito, muito menos complicado do que hoje. Minha mulher estranhou muito ao me ver ali, naquele horário.

— O que aconteceu?

— Nada meu bem, mas apronte-se que vamos dar uma volta.

— O que é isso? Por que a pressa? E, aonde vamos?

— Vamos até o hospital, quero mostrar-lhe algo muito importante.

Muito curiosa e sem saber do que se tratava, trocou de roupas e saímos. No caminho, curiosa, várias vezes me perguntou o motivo de nossa ida. Eu apenas dizia a ela para aguardar um pouco mais.

Chegando ao hospital, fomos diretamente ao ambulatório e lá estava a madre nos aguardando:

— Esta é a madre Rosalice, e aqui na maca está uma linda criança, que a mãe abandonou. Quero saber se você gostaria de adota-la como nossa filha. Se você quiser, podemos leva-la para nossa casa imediatamente, não é madre?

— Claro doutor, se aceitarem a filha é de vocês!

Minha mulher foi ver melhor a criança, desenrolou-a de seu cobertor e viu-a mexer todo o corpinho. Achou o bebe muito bonitinho e disse:

— Eu aceito!  Quero esta criancinha! Percebemos que lagrimas rolavam dos olhos da madre.

— Então é de vocês, podem leva-la e toda a felicidade para vocês e para esta pobre criança, que agora vai ter pais para cria-la!

Fomos para casa muito emocionados, minha mulher com o bebê no colo.

Minha sogra, que morava conosco, viu minha mulher com a criança e perguntou:
— O que é isto?

— É sua nova netinha, uma nova filha que acabamos de adotar!

 — Meu Deus, eu não acredito!  Seu filho nem começou a andar e vocês adotaram esta criança?

— Sogra, venha ver, que linda ela é!

Minha sogra era a melhor pessoa do mundo. Havia ajudado integralmente na criação dos meus quatro filhos até então. Ela que dava banho nos quatro, preparava suas comidas, cuidava deles quando febris, enfim, nunca precisamos contratar uma babá. Na realidade, aceitou cuidar de mais um neto.

Achei estranho minha mulher ter aceitado a adoção sem titubear e tão rapidamente, mas logo veio uma resposta. Minha esposa disse:

— Meu bem, quando aceitei, pensei muito em minha irmã, casada há cinco anos e que não pode gerar filhos. Ela anda deprimida e não se conforma de termos quatro e ela não poder ter filhos. Você aceita, que ofereçamos esta criança para ela?

 Como não estávamos ainda sentimentalmente envolvidos com o bebe, permiti a ela que telefonasse para sua irmã, após ter conversado com sua mãe. Conversou longamente no telefone, depois me chamou e disse que a irmã, havia ficado extremamente nervosa com a proposta e após muitas explicações, recusou, dizendo não estar preparada para ser mãe, para aceitar tamanha incumbência, para tomar esta decisão e sabia que seu marido, na ocasião em fase econômica difícil, não iria concordar. Assim, em conclusão, ficaríamos com a criança, o que era totalmente de nosso agrado. Neste momento, disse a ela:

— E se falássemos com o Tarcísio e Lurdinha?  Estavam casados também há cinco anos e não tinham filhos. O casal era um dos nossos melhores amigos e os padrinhos de nosso filho mais novo. Ele também era médico, e bem de vida. Cerca de uma semana atrás, havia almoçado com ele, onde me confessou que, apesar dos vários exames, tratamentos médicos, sua mulher não conseguia engravidar. Chegou a lacrimejar ao relatar esta dificuldade e confessou que, não ter filhos se tornara uma enorme frustração para eles. Minha mulher concordou, achou uma boa ideia. À noite por volta das 19 horas fomos até o apartamento deles. Minha sogra havia dado em bom banho no bebe, passado talco bem cheiroso e colocado nela uma linda roupinha, na realidade, um presente que meu filho recebeu deste casal, quando ele nascera. Ao chegar, pedi a minha mulher que ficasse no carro com a criança esperando, pois no caso de não aceitação, nem iriam ver o bebe. Subi ao seu apartamento e a me ver ficaram muito surpresos:

— Realmente eu vim aqui para oferecer a vocês um bebe. Ele está lá embaixo no carro com minha mulher, aguardando uma resposta. Contei a eles tudo o que se passou com a madre Rosalice e afirmei a eles que, quando aceitamos a criança, tínhamos pensado neles. Caso não aceitassem, a criança seria, realmente, nossa filha.

Tarcísio, imediatamente desceu e logo voltou com minha esposa e o bebe no colo. O bebe foi colocado em uma cama, em um dos quartos, e ficou sendo analisado pelo casal. Percebi que eles gostaram da criança, estavam emocionados. Tarcísio olhou para sua mulher, ela fez um gesto afirmativo e ele disse:

— Nós aceitamos, com uma condição, que ela seja agora examinada por um pediatra, um berçarista. Concordei imediatamente. Telefonamos a um colega, muito amigo nosso, meu colega de turma, que se prontificou a vir imediatamente ao apartamento.

Examinou a criança nua, auscultou seu tórax, o coração e concluiu - a criança é perfeita, bem sadia, eu só não posso afirmar se sua cor é branca. Nesta idade, esta verificação é muito difícil, mas pelo que vejo, é branca.

O casal prontamente aceitou ficar com a criança, nos despedimos e voltamos para casa. Soube que naquele dia memorável, mudou a vida da criança e do casal. Eles iam viajar para uma estação de águas no dia seguinte, telefonaram para o hotel aonde iam se hospedar, suspendendo a reserva. Contrataram de imediato uma baba, levaram a criança a um familiar que era pediatra, organizaram a alimentação, e ela passou a ser tratada como uma verdadeira rainha. Foi feito o registro civil e deram o nome de Maria Cecilia, sendo batizada após três meses e nos escolheram como padrinhos. Tínhamos frequentemente, todos os detalhes da evolução da criança, relacionados. Como complementação, quero informar que o casal, após um ano, adotou uma nova criança, também do sexo feminino e um ano mais, Lurdinha engravidou naturalmente, dando à luz outra menina. Este fato é muito interessante e realmente conhecido, de um casal adotar uma criança por não conseguir ter filhos, e após a adoção, a mulher vir a engravidar.

 O tempo passou, seguimos todo o desenvolvimento da Cecilia, criança esperta, bem prendada, inteligente, que frequentou sempre as melhores escolas, clube onde praticava esportes. Na puberdade, com quinze anos, tornou-se uma mocinha linda, voz maviosa, com um sorriso aberto, amplo, exteriorizando grande felicidade.

Não posso me esquecer do dia em que fomos visita-los, que havia alugado uma casa no Guarujá, para passar as férias de julho. La estava Cecilia e suas duas irmãs, que fizeram para nós, uma pequena representação teatral. Parecia que se tornaria uma artista. Senti também que um de meus filhos, que estava conosco sentiu uma ¨quedinha¨ por Cecilia, que estava exuberante.

Certa ocasião, visitando o casal, perguntei a Lurdinha, se ela havia contado a Cecilia, que era filha adotiva Ela me respondeu:

— É evidente que eu contei e várias vezes, deste que ela começou a tomar conhecimento das coisas. Parei de falar quando ela, um dia me retrucou:
— Eu já sei mamãe, que vocês não são meus pais de sangue, mas de coração. Isto não me interessa, pois sempre fui e continuo sendo muito feliz. Vocês são meus pais queridos.

Ela nunca quis saber quem eram seus pais verdadeiros e também não sabe da participação que tivemos no caso. Nunca houve uma distinção entre as duas adotivas e a filha natural.

Aos dezoito anos, Cecilia, ainda sem saber o que gostaria de fazer, prestou vestibular em várias faculdades. Entrou em quatro delas, inclusive em direito, o que seu pai gostaria que fizesse, mas acabou gostando e optando por artes plásticas. Dedicou-se bem à sua profissão, fez mestrado, ao qual fui assistir na sua defesa de tese, fez doutorado e finalmente conseguiu, por concurso, um lugar de docente na USP.

Guardo bem na memória, a ocorrência de um fato, de extrema coincidência, bem significativa. Em 1992, ainda no curso de artes plásticas, Cecilia me telefonou dizendo:

— Tio, eu tenho que fazer um trabalho para a faculdade, que verse sobre um dia em um centro cirúrgico, assistindo a uma operação. Conversei com meu pai e ele me sugeriu que telefonasse para o senhor. Você tem alguma cirurgia para esta semana, que eu possa assistir? 

— É claro – respondi - você pode vir amanhã cedo às oito horas e vou deixar uma permissão em seu nome, para você poder entrar no centro cirúrgico.

Agora, um pequeno parêntesis.

Cerca de três dias antes, recebi um telefonema do diretor da faculdade que disse:
— Doutor, você se lembra de uma madre, que trabalhou no ambulatório de neurocirurgia há uns vinte anos? Seu nome era madre Rosalice. Ela largou as vestes de freira, casou-se e foi morar em Itanhaém. Seus familiares trouxeram-na ao hospital e vieram até a diretoria nos procurar, para que intercedêssemos por ela. Trouxe uns exames e pelo relato da tomografia, está com um tumor cerebral! Gostaria que você cuidasse do caso.

— É evidente - disse eu. Claro que me lembro dela, mas deste que as madres deixaram este hospital, nunca mais ouvi falar dela e das outras mais. Peça para trazê-la agora, ao meu escritório no sexto andar e pode deixar tudo por minha conta.

Recebi Rosalice com seu marido, examinei-a, revi os exames e pedi sua internação imediata. Ela estava confusa, com dificuldade na fala e os exames radiológicos mostravam a presença de um grande tumor cerebral, localizado no lobo temporal do lado esquerdo, o que explicava seu distúrbio na fala. , Ela estava, após vinte anos, com o aspecto bem envelhecido. Lembrou-se de mim, mas quando perguntei sobre certa adoção, que ela havia me proporcionado, perdeu-se muito. Dada à urgência, internei a paciente e marquei sua cirurgia para a próxima terça-feira.

Foi, exatamente na segunda feira, um dia antes, que Cecilia me telefonara, pedindo para assistir a uma cirurgia.

Na terça-feira, fomos para o centro cirúrgico e lá estava Rosalice sendo anestesiada e preparada para a cirurgia. Meu auxiliar era meu próprio filho, meu residente, que decidira, dentro da medicina, fazer a mesma especialidade. Logo chegou Cecilia, nervosa, por nunca ter entrado em um centro cirúrgico. Expliquei o caso, mostrando os exames e a presença do tumor, e ela fazia perguntas e anotações de tudo. A cirurgia decorreu normalmente, o crânio foi aberto, o tumor todo retirado e o fechamento foi feito pelo assistente. Após umas três horas, saí com Cecilia do centro cirúrgico, tomamos um café e nos despedimos. No mesmo dia, encontrei seu pai e contei a ele da presença de Cecilia, assistindo uma cirurgia craniana.

— Eu já sabia - disse ele - Ela me telefonou contando tudo.

— Mas, você ainda não sabe do maior detalhe. Nós operamos um tumor da madre Rosalice, que você deve se lembrar de quem é. Veja que enorme coincidência!
Tarcísio fez uma enorme cara de espanto e logo me disse:

— Pelo amor de Deus, guarde todo segredo a respeito disto!

— Pode ficar sossegado.

Dias após recebi um bilhete de Cecilia, agradecendo a manhã maravilhosa e muito proveitosa que havia tido conosco.

Infelizmente, o tumor retirado da madre era o mais maligno do cérebro e ela veio a falecer uns seis meses após, apesar do tratamento adicional. Esta mulher foi uma das maiores responsáveis por Cecilia ser, o que é hoje, uma mulher feliz, bem casada e mãe de duas meninas maravilhosas.


Cecilia nunca poderia imaginar que naquele dia, no centro cirúrgico, esteve tão perto daquela mulher, que realmente mudou sua vida!

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