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O SEGREDO DE CADA UM - Lançamento de livro 07/12 - 16 horas


LANÇAMENTO DE  LIVRO :

O SEGREDO DE CADA UM


Convidamos você para o lançamento do primeiro livro deste grupo coeso de escritores com vertentes tão variadas: O SEGREDO DE CADA UM.

Trata-se de uma obra de contos e poesias. São textos extraídos da vivência, e do sentimento que os acolhe.

O SEGREDO DE CADA UM é uma revelação de autores,  e de sentimentos que se escancaram para os leitores.



O livro O SEGREDO DE CADA UM sai pela All Print Editora.

Seus autores, inventadores de histórias, provocadores de sensações e emoções, são frequentadores da Oficina de Textos EscreViver, e se encontram todas as terças feiras no Clube Alto dos Pinheiros para criar personagens e emoções:

Fernanda Rodrigues Alves Torres
José Vicente Jardim de Camargo
Judith B. Cardoso
Maria Luiza de Camargo Malina
Mario Augusto Machado Pinto
Mario Luiz Tibiriçá Ramos
Oswaldo Romano
Suzana da Cunha Lima
Vera Lambiasi

Esses escritores fazem parte da Oficina de Criação de Textos EscreViver, que acontece às terças feiras no Clube Alto dos Pinheiros, e para a maioria esta é a primeira publicação. 
Mas,  já estão animados para o próximo livro individual,  que deverá sair em 2014.





Venha prestigiar esses amantes de histórias. 
Venha dividir com eles a alegria de criar emoções.

Lançamento do livro: O SEGREDO DE CADA UM

Será no dia 07 dezembro - 16 HORAS

Salão Social

CLUBE ALTO DOS PINHEIROS
Tarde de autógrafos

Venha encontrar com os autores!

Haverá leitura dramatizada às 18 horas com Sandra Lessa.


Sabor de Mel - Vera Lambiasi



Sabor de Mel
Vera Lambiasi


Gabi e Gigi são duas abelhinhas que sonham voar alto até alcançar Cinderela.

Marcado o voo para antes do Papai Noel chegar, Gabi leva um empurrão da vida, que lhe dói um pouquinho o corpo, ainda frágil. Passa bons bocados em recuperação, tendo anjos da guarda de força em sua torcida. Enquanto isso Gigi reza para pôr sua companheirinha de pé, puxando-a sem descanso a realizarem a meta. Gigi nada contra uma corrente de incertezas, não quer pensar em doenças e tristezas, e acaba ajudando a quem nem imaginava. A vida é assim, pequenos auxiliando entendidos a enfrentar o inesperado.

Gabi, que de brava virou sorridente, tudo agradece, apesar da ainda pouca percepção dos percalços passados.

As duas partem em viagem, levando consigo insetos intrusos, que têm por desculpa carregar suas bagagens.

Como se elas precisassem ...



Todo ano, no Verão - Suzana da Cunha Lima



Todo ano, no Verão
Suzana da Cunha Lima

Fui a Porto Seguro com amigas para um campeonato de vôlei.  Dias cheios de sol, noites de lua cheia que, refletida no mar, é escandalosamente linda.

Eu amava este campeonato anual.  Livre e solta, viajando com amigas para fazer o que tanto amávamos, e saindo de noite para curtir a boemia de Porto Seguro. O final da tarde era para desfilar na Passarela do álcool. Lá assistíamos às cantorias de Diego, ou íamos verificar como ia nossa sorte e destino com Lady Dulce, mestra no tarô e runas.

Um dia ela nos avisou que algo ia sair do mar e nos machucar, que evitássemos ir para o fundo ou entrar sozinha. 

Ninguém prestou muita atenção.  Por aqueles dias, o mar estava manso como uma lagoa e a água morna do nordeste é tentadora demais para ficar só na beirinha ou levando caixote na arrebentação.  Todas sabíamos nadar, porém eu era mais afoita, criada em praia do Rio de Janeiro a vida toda, achava-me doutora em furar onda.
Naquele dia não havia jogo para nós, então aproveitamos para  ir mais cedo para a praia, fugindo um pouco do sol do meio dia, que era capaz de torrar o cérebro de qualquer uma.

Só faltava um jogo para nos sagrarmos campeãs, estávamos eufóricas e bêbadas de alegria pela taça que levaríamos para nosso Clube em São Paulo.

Eu então, era a mais alegre da turma, Elas haviam me adotado, pois eu não era sócia daquele clube, porém como boa levantadora, tinha concorrido muito  para a vitória que se aproximava.   Minhas amigas foram saindo aos poucos do mar e se abrigando nas barracas e pedindo tira-gostos para acompanhar a cerveja geladinha que vinha num balde de gelo, trazida por Pereirinha, o garçom do bar da praia.

Eu ia ficando, nadando e mergulhando, nem senti o tempo passar. Somente quando tive a horrível sensação de queimadura na perna. Foi tão forte que quase perdi os sentidos, reparei que tinha parado de nadar e estava indo para o fundo. Ninguém na praia notou que eu estava me afogando, não comandava mais minhas pernas ou braços.  Numa dessas que desci quase ao fundo, reparei numa espécie de mancha gelatinosa agarrada à minha perna. Que seria aquilo, pensei quase desfalecendo e engolindo muita água.  Foi quando senti alguém me pegar e levar para a superfície, nadando vigorosamente para a praia.

Acho que desmaiei, foi aos poucos que voltei a mim, vendo a expressão preocupada de Pereirinha a me observar.

- Está melhor, garota? Olhe, foi por pouco... Uma água viva gigante, parecia uma arraia.  O veneno dela é mortal.

Vi que sua fisionomia se desanuviava e ele me ofereceu água na garrafinha.

-  Deve tomar muita água e lá no Pronto-Socorro vão lhe dar a vacina.  Mas não se mexa, para o veneno não se espalhar.

Eu ainda estava fraca e respirando com dificuldade. Nem vi direito me levarem para a ambulância e o que fizeram lá no hospital.  Acho que acordei de vez uma hora depois.  Estavam três amigas a me espiar completamente apavoradas. .  Senti pelo ar de alívio delas que o pior já tinha passado.  Mas de onde surgira aquela água viva gigante, se é que era mesmo água viva. Nunca tinha aparecido nem água viva pequena em Porto Seguro, quanto mais aquele bicho horroroso.

Os enfermeiros tiveram que sedar o bicho para ele relaxar e largar minha perna. Depois o levaram para exame.  Minha perna estava roxa e inchadíssima. Eu mal a sentia.

Foi quando me lembrei da advertência de Lady Dulce, à qual ninguém prestara a atenção devida, muito menos eu, louca para nadar no mar.

Afinal, nosso Clube ganhou a taça e viemos de volta para São Paulo, depois da devida comemoração na barraca TÔ-ATÔA.  Eu ainda fiquei um mês de cadeira de rodas, com a perna completamente imobilizada.  E aprendi a atender mais a advertências vindas do pessoal sensitivo.  Lady Dulce foi muito elogiada pela sua clarividência.
Quando voltei a Porto Seguro no outro ano, tive oportunidade de agradecer pessoalmente a Pereirinha  pela presteza em me salvar. Só um olhar treinado como o dele para  perceber que algo ia mal com aquela carioquinha prosa.

Foi quando reparei melhor nele, um homem alto e sorridente, bronzeado,  que, naquele verão já tinha comprado três bares na orla.  Estava fazendo um bom dinheiro.  E tinha colocado salva-vidas perto de suas barracas.  Sempre podia acontecer algo perigoso com turistas desavisados.

Até hoje, ninguém soube me esclarecer que bicho era aquele e como tinha aparecido em Porto Seguro.  Só sei dizer que naquele ano, tive o melhor verão de tantos que já havia passado lá.  Eu e Pereirinha, sabe como é... Percebemos que havia uma enorme afinidade entre nós e além dos programas nas Barracas, onde dançávamos axé  e forró toda noite, eu só entrava no mar com ele. Era um cuidado comigo que só vendo...


Pena que aquilo não ia levar a nada de mais sério.  Eu tinha minha vida em São Paulo e ele lá em Porto Seguro, com mulher e filhos. Mas isso em nada quebrou o encanto, pelo contrário; deu um ar de segredo muito excitante. Foi uma linda história de amor, resgatada a cada verão que eu passava lá. E olhe que foram muitos...

Bosque Abstrato - Vera Lambiasi



Bosque Abstrato
Vera Lambiasi

Égua de seis patas, usava quatro para descansar duas.

Levava Dolores a voar entre pinheiros desconexos. Atravessava os troncos e esbarrava em ares leves.

Dona e animal eram um só ser púrpura a deslizar.

Cavaleiro anil vinha ao seu encontro, e quando mesclados viravam uma só nuvem arroxeada.


Assim desapareciam aos céus.

O copo e o relógio - Suzana da Cunha Lima


O copo e o relógio
Suzana da Cunha Lima

Pousou o copo com água na mesinha de cabeceira, colocou o despertador para tocar. Tinha que se levantar às cinco da manhã, para o encontro com o nascer do sol, conforme o convite da bela morena da noite anterior. E que convite! Exclusivo para ele, olhos cheios de promessa, a moça era linda demais para ser dispensada. Meteu-se na cama, fechou os olhos. O sono não vinha...olhou o relógio. Meia-noite! Estava mais desperto do que nunca, excitado com as expectativas amorosas que antevia para o próximo dia. Resolveu acordar de vez e ir ao Lual, no Pontal de Areia, de lá emendaria para o encontro com o sol e ia dormir quando pudesse... Já havia um bando de gente bonita embalado pelo luar e cerveja, ao som de música pop. Alguns já estavam até dentro d`água.  Estava se divertindo, quando seu olhar percebeu um balançar de cabelos inimitável, à sua frente.  Mal refeito do susto, achegou-se, perguntando meio sarcástico:

- Está trocando a lua pelo sol? - Ela o olhou sorrindo, encantadora como sempre, camiseta molhada, revelando seus belos seios:

- Oi, que bom que veio. Daqui vamos direto para Pedra Pintada junto com esta galera animada. Vem também?

Foi quando o despertador tocou, estridente.

TESOURA - M.Luiza de Camargo Malina


TESOURA
M.Luiza de Camargo Malina

A tesoura picotava, picotava e picotava. Cansada já pensava em se aposentar, seus dentes gastos nem conseguiam mastigar o papel ou um pedaço de fita. Às vezes escondia-se, para ninguém encontrá-la. Divertia-se com os pulinhos de promessas  desesperadas da dona dos picotes.

Um dia, ao chorar, resolveu passar um susto. Jogou-se na cama toda arreganhada, querendo se passar por aranha, já que era preta também. A dona aranha escutou isso e ficou irritada com a ousadia da tesoura, que adormeceu rapidinho. Começou a fazer  teias em cima dela. A tesoura sentia cócegas e ria muito no sonho, acordou com calor.

 Queria descer da cama, as pernas não obedeciam, como ela dormiu de boca aberta, estava cheia de teia, não podia picotar.

Pensou: E agora, como vou sair desta! Nunca mais vou me disfarçar de aranha.  Eu devia lembrar de que tesoura aberta em cima da cama, não dá certo. Vou me esconder dentro de uma caixa, porque até eu fiquei azarada!


                                                                                     


TEIMOSIA ANIMAL - OSWALDO ROMANO




TEIMOSIA ANIMAL
OSWALDO ROMANO                                                  
                                                                 
         Lá pelos idos de 40, o algodão brasileiro ganhava dia a dia um grande interesse comercial. O café demorava de 2 a 4 anos para a primeira colheita. O eucalipto 7 anos para o corte. A cana utilizada quase só para o açúcar, seu cultivo vinha de há muito tempo, e o que se produzia atendia com sobra para exportação o consumo nacional.

         A produção do pequeno agricultor tinha em vista a alimentação dos seus animais durante um ano, e dava sustento até a próxima safra. A cana picada por rusticas máquinas manuais, em pedaços do gomo de não mais que 5 cm, quando a bastecido o coxo de alimentação era uma  festança.

         Para o grande produtor a colheita só era autorizada quando a usina estava com estoque baixo e coincidir de a cana estar no ponto. Hoje ficou mais fácil, é usado o Refratômetro que mede os graus Brix, controlando o momento próprio da colheita com  a usina.

         A cana tinha promissor futuro, mas a bola da vez era mesmo o algodão. Assim o seu Evaristo, meu pai, levado pelo propalado lucro, arrendou 20 alqueires de terra, ainda mata, e entusiasmado lançou-se na plantação. Embora possuísse um sitio maior que isso, era aproveitado com outras plantações como frutas, pastos, gado. Do sítio provinha sua experiência e gosto pela terra.

         O seu Evaristo, filho de italianos, já era de uma classe média alta conseguida a duras penas. Sua vida estava no patamar da classe  dos emergentes. Conseguiu realizar alguma coisa sob forte economia no trato das coisas fúteis.

         Filho de colonos, era da enxada desde a infância. Até arrendar as terras mencionadas fica um rico espaço que guarda muitas passagens históricas. Citei poucas e dei rápidas pinceladas sobre sua vida e seu desempenho, montando um cenário para a compreensão deste conto.
         Assim aconteceu o arrendamento das terras para o plantio do algodão. De madrugava e com seu Ford 29, usado na cidade para o ganha pão, seguia com o propósito de juntar seus peões para carregarem borrifadores nas costas, iniciando cedo a guerra contra as pragas. Eram formigas, brocas da raiz, do ponteio e os terríveis Bicudos.

         Uma interessante e inocente defesa, era plantar junto ao pé do algodão ervas que eles gostavam. Funcionava como estanque evitando a subida das terríveis pragas que adoravam os botões do algodoeiro.

         Quem quer conseguir alguma coisa tem que madrugar, sim senhor! Correr para que o bicho não pegue.

         Mais tarde, às vezes, eu ia à cavalo na mula Zola encontra-lo. Era adolescente, queria prestigia-lo, mas também meu gosto era cavalgar e explorar a mata no contorno. Retornava só ao cair a noite. Foi num destes dias que depois de andar uns oito quilômetros, estrada de terra, muitos buracos, parecia desaterrada nas subidas, mas na verdade era cavada entre os barrancos pelo uso e as corredeiras das chuvas.

         Anoitecia,  então resolvi puxar um pouco mais, quando de repente a Zola empacou. O seu Evaristo estava muito na frente, impossível chamá-lo. A mula teria sede ou o arreio a machucava? Isso nunca tinha acontecido. Zola era uma excelente companheira, obediente.

         Não da para esquecer porque lembro apenas de uma vez que me aprontou uma dessas desastradas surpresas.

         Foi no dia que a levei, em pelo, pastar num caminho de arrabalde, cheio de capim nas margens. Amarrei-a num tronco com uma longa corda, cuja ponta servia de rédeas, deixando-a pastar a vontade. Enquanto isso, entrei no mato a procura de laranjinhas, a chamada Bacopari que dá rente ao  chão.

         Na volta, surpresa!  Cadê a Zola? Arrebentou a corda, e desapareceu. Fiquei perdido, ela nunca aprontou nada parecido. Desorientado devaneava ali pela estrada. Sorte, ouvi o trotar de animal. Voltei-me naquela direção, ví distante uns 500 metros, ela cruzar a estrada levando montada uma mulher nua! Sim, nua!

         Fiquei bobo de vez! Tudo que consegui fazer foi chamá-la, chamá-la. Um forte assobio com ajuda dos dedos, como era meu costume, repeti diversas vezes.  Descrente, esperei. Não me desapontou, ouviu e obedeceu de imediato, chegando como a tinha amarrado, - em pelo e suada. Eu depositava-lhe absoluta confiança. Espantado perguntei-lhe, quase dopado, o que tinha acontecido. A linda Zola, olhou-me e claro nada disse. Assustado, estático,  procurava na redondeza a possível Godiva nua, que a teria sequestrado. Até medo senti pelo inusitado fato.

         Bem, este causo foi tão real, que conta-lo com credibilidade exigiria um escritor com muitas horas de estrada.

          Mas não, não me esqueci. Voltando ao meu histórico, a mula estava indócil e empacada na estrada.

         Insistindo aceitou recuar e voltar alguns metros. Tinha aprendido o macete de tocar no galope para passar. De novo estancou.  Dei-lhe uns tapinhas carinhosos no pescoço e disse:

         — Afinal, o que você quer? O que aconteceu, Zola?

O que aconteceu, não, - estava acontecendo: Uma enorme cascavel lentamente cruzava o caminho, tocando seus guizos. A Zola tinha sentido o perigo e novamente tive sua proteção.
Saudades da Zola.


                            — Podia ter trazido àquela mulher,  para que a visse de perto?

O CAMINHANTE - M.luiza de Camargo Malina


O CAMINHANTE
M.luiza de Camargo Malina

Com uma visão de 360 graus, ela de tudo sabe, qualquer transparência é mera coincidência.

Brian crescera num orfanato acompanhado de uma corrente em seu pescoço, fixada sem qualquer fecho, com o pingente de uma diminuta garrafa. Para ele era tão natural quanto aos dentes na boca.

Causava curiosidade. Tanto a sua origem quanto ao líquido interno que reluzia à medida que crescia. A preocupação dos cuidadores aumentava.

Certa vez Brian desaparece. Selene, a cuidadora mais antiga, recolhe-se preocupada em seus aposentos. Os dedos percorrem o colar de contas. Em sua imaginação aflitiva recorre a uma tesoura, cortando a corrente de Brian. O telefone toca. Brian é encontrado sem sentidos. Selene corre ao seu encontro. Entende o silêncio de gratidão na respiração de Brian.

A pequena mão entreaberta, segura a minúscula garrafa rompida, sobrepondo a letra M com o líquido em forma de tesoura, cortando a corrente que o prendia ao passado que se esvai, num brilhante fluir do entreolhar de Selene e Brian.


As  informações foram interrompidas.

Varal - José Vicente Jardim de Camargo


 Varal
José Vicente Jardim de Camargo


Varal estendido a espera do que?
Das mãos calejadas da lavadeira?
Das roupas molhadas ávidas de sol?
Do aperto forte do prendedor?
Do pouso bamboleante dos pássaros?

Creio que ele mais deseja,
É o toque macio da lingerie de seda
Para deixá-la, abraçada a ele, se balançar ao vento...


SAUDADES DO CARRO VELHO - Oswaldo Romano




SAUDADES DO CARRO VELHO
   Oswaldo Romano                                                                           
UM CONTO REAL
                                                
         Vou contar a história do último carro velho que foi meu. É curioso como a gente pega amor às coisas que nos pertenceram, mesmo feitas de frágeis folhas de latas velhas. O tempo cria essa afeição, esse apego guardado com carinho mesmo diante do novo recém conquistado. O carro velho esconde lembranças impossíveis de se esquecer. Foi novo. Nós também. A sua história escrita preenchia dezenas de folhas.

         Montado em cima de frágeis longarinas dobradas, a indústria nacional improvisava como podia. Sua lataria usava folhas tão finas, a ferrugem aparecia cedo para o entusiasmo dos funileiros.

         A grande ajuda nos remendos da lataria consistia numa providencial massa cinza, cujo mais importante ingrediente na composição era o óleo de bacalhau. Mantinha o produto úmido na embalagem feita de folhas de flandres. Sua consistência úmida cheirava muito, mas ajudava no deslize da aplicação.
         Quando o carro era comprado para o litoral, a carcaça já estava condenada.

         Certa noite, num fim de semana dos que passávamos no Guarujá, era sagrado nosso grupo, a maioria tenistas, depois do aperitivo oferecido por um dos moradores do edifício Tendas, sair para jantar, iniciando na sexta  o fim de semana.

         Escolhemos o Dalmo, famoso pelos frutos do mar. Ficava sob um imenso quiosque de sapé, longe, próximo das marinas, caminho das balsas de Bertioga. Restaurante de muitas histórias, comprometidos na cozinha entre diferentes casais cozinheiros, eram histórias recordadas na mesa. Nos primórdios, o fato curioso entre os fregueses atendidos, era lavar os próprios pratos para quem esperava, se não amigos, ficavam.

         As caldeiradas de mexilhões, a salada de palmito do mato desfiado al limone e vinho branco verde Calamares, aquele da primeira Região Demarcada pelo Marquês de Pombal, era só o começo. Alguns pratos recebiam nomes de badalados do pedaço. Eram pequenas alterações dos originais, pitadas de condimentos especiais ou flambagem a vista, com o renomado Conhac Courvoisier. Os peixes, crustáceos, risotos e no final uma grappa fechava a noite.

         Nem sempre. Nesse dia esta história teve continuidade. Quando na volta, acionando o velho carro emprestado do caseiro,  voltamos ouvindo o bater das suas folhas de lata velha, todas remendadas com massa  do folheiro. No caminho sentimos forte cheiro de pelos e borrachas queimadas. Provinha de fumaça que desprendia do motor, mas não suficiente para interromper nossa volta até em casa. Lá chegando, abrindo o capô, vimos um couro raspado entre as correias. Era parte do que sobrou de um gato afaimado.

         Desprezando-se o fato do motor ser quentinho, o que levaria o bichano a entrar num lugar tão difícil que o levou a morte?  

A boa Nova - Suzana da Cunha Lima


A Boa Nova
Suzana da Cunha Lima


Havia enorme alvoroço no céu, naquele dia; uma correria de lá para cá, parecia ensaio de escola de samba.

Os querubins, tão pequeninos com suas asinhas que só faziam vento, pulavam de nuvem em nuvem, levando recados e  carregando enfeites.

Os Serafins,  mais altos e magrelas, eram responsáveis de pendurar as bolhas de sabão coloridas e os feixes de luz nos diversos arco-íris que cruzavam o céu e  serviam de pontes entre as mais variadas espécies de nuvens.

Os Anjos, que eram os mais antigos na profissão, iam supervisionando aquela aparente bagunça e apressando os mais lerdos ou distraídos.

- Vamos, vamos, tem que estar tudo pronto para a vinda do Grande Pai!

De vez em quando abria-se uma janela nas nuvens-escritório e surgia cabeça de um Arcanjo, veneradíssimos, porque eram os únicos que tinham acesso irrestrito ao Grande Pai.  Eles eram encarregados das mais espinhosas missões no Planeta Terra.

Ah, a Terra! Grande preocupação do Grande Pai. Ele buscava soluções que não o obrigassem a destruir aquele planeta rebelde, repleto de pecadores. Seria uma atitude muito radical e o Grande Pai não queria desistir de sua criação. Reunido com seu ministério, ouvia com paciência o que Lhe aconselhavam os Arcanjos:

“Não foi bom lhes conceder o livre arbítrio, Pai - Eles não sabem o que fazer com a liberdade – Eles vão acabar com tudo, já lançaram duas bombas atômicas e a Galáxia está em polvorosa.”

O Grande Pai ouvia tudo, mas com a Sabedoria e Poder que a Eternidade Lhe concedera, optou por outra alternativa. Perguntou aos Arcanjos que Anjo poderia ir à terra para dar um Recado Seu.

Eles se lembraram de Gabriel, o mais rápido, inteligente e simpático dos Anjos.

- Então será ele. Vamos fazer uma grande Festa e no final, eu o chamarei e o encarregarei desta Missão.  E ele será promovido a Arcanjo.

.E na hora prevista, o céu todo enfeitado,  sol e lua dividindo em harmonia o mesmo espaço, todos se reuniram, à espera do Grande Pai.

Que surgiu mais radiante e luminoso do que o sol, informando a todos ali presentes a solução que achara para o Planeta Terra.

- Um Anjo vai descer à Terra e levar a Maria, a notícia de que ela será Mãe de meu Filho.

- Oh, oh, ah, ah,  murmurou aquela multidão cintilante dos Filhos da Luz.

- Os humanos se empenham em guerras sem fim, matando e aleijando os próprios irmãos, destruindo plantações e cidades e tudo em Meu Nome, em nome de Deus! Não posso permitir isso. Já enviei muitos Profetas, muitos Mestres, mas eles se mantém surdos aos meus apelos  .Esta é a última tentativa para preservar este planeta tão pequeno e tão selvagem e fazê-lo voltar à convivência pacífica com os outros planetas do sistema.

- Oh...ah..continuavam surpresos e curiosos da medida que o Grande Pai estava tomando...

- Gabriel, venha aqui.  Você foi muito recomendado e sei que desempenhará muito bem, sua missão. Quero dotá-lo de poderes especiais e abençoá-lo.

Gabriel quase morreu de susto (se fosse possível anjo morrer)
-Eu, Grande Pai?

- Sim, Gabriel. E daqui por diante, você será conhecido como o Arcanjo Gabriel, aquele que foi levar a boa nova ao mundo. E este dia, será celebrado em todo o Universo, como o Dia da Anunciação.

- Grande Pai, e o que Seu Filho vai fazer para salvar o Planeta Terra?

- Ah, Gabriel, vai haver muita dor e sofrimento até que isso tudo volte à normalidade, à Minha Normalidade.  Mas não falemos disso agora. Você é o Mensageiro da Alegria e quando Meu Filho nascer, será um dia Especial. O dia de Natal, onde trocamos presentes, oramos e perdoamos e fazemos grandes promessas. O Dia de Natal, não importa os diversos nomes que vai ter, será um dia de Amor e União!

Escada & Sentimentos - José Vicente Jardim de Camargo





Escada & Sentimentos
José Vicente Jardim de Camargo


Parado aos seus pés, vendo-a assim subindo ao leu, cinzenta e fria, me toma uma sensação de vazio, de incerteza, que me faz perguntar:
- Para onde me conduzirá?
- O que me aguardará lá em cima?
- Que paisagens terei? 
- Estarei seguro?
Pareço pequeno ante a mesma, mas ao mesmo tempo, seu aspecto desafiador me transmite vontade de vencer o desconhecido...
Um impulso me move para frente e convicto afirmo:
- Vou subir!
- Vou curtir as sensações que ela me trouxer.
- Em cima me sentirei feliz pelo desafio vencido.
E, de passos firmes, seguirei adiante  a desbravar o agora para mim invisível, mas com certeza maravilhoso lado de cima...

O ÚLTIMO VERÃO - Maria Luiza de Camargo Malina


O ÚLTIMO VERÃO
Maria Luiza de Camargo Malina

 Poucas quadras e o mar a espera. Baskim, Rasha e o pequeno Tim estão eufóricos.
O gralhar das aves marinhas, dão um colorido especial, como a avisar umas às outras, que é hora da retirada para pesca em alto mar. Cedem o espaço aos visitantes que se aproximam correndo com sacolas e boias coloridas.

- As crianças parecem que se multiplicaram, há quanto tempo não vínhamos à praia? -Pergunta Baskim a sua esposa, observando com binóculo ao longo da praia.
- O último verão, com liberdade, foi há dois anos. - responde Rasha.

Ele continua a examinar tudo ao redor, não dando importância à resposta de Rasha. Tim brinca na beira das ondas. A mãe o incentiva a nadar e o pai acompanha as brincadeiras de furar onda, chutar a água levantando bolinhas. O dia passa rápido entre lanches e risadas.

- É hora de voltarmos, a praia está vazia - diz Rasha.

- Vamos entrar no mar de mãos dadas para agradecer ao Infinito este dia - diz Baskim, e correm alegres saboreando a graça recebida.


Ao tocarem os pés na areia, de longe um Ra-ta-ta-tá da faixa de Gaza.

O mistério de Novitatória - Suzana da Cunha Lima



O mistério de Novitatória
Suzana da Cunha Lima



Novitória, cidade ao norte de Hidrência, uma das primeiras províncias a utilizar um transporte coletivo movido por bois, estava ficando famosa. A cidade tinha uma coisa muito curiosa que fazia com que muita gente desejasse nela morar...

Ouvindo falar disso, o grande diretor de cinema Juca Prado, que estava à procura de locações para um novo filme de suspense, resolveu viajar até lá.  Que coisa seria essa? Além disso, o sistema de transporte coletivo movido a bois o intrigou bastante.  Era alguma cidade perdida no tempo, na Idade Média, por exemplo? Uma descoberta arqueológica?

A dificuldade foi achar quem o levasse lá, já que nunca ninguém havia ouvido falar de tal cidade, Novitória...  Finalmente, o auxiliar do operador de câmera, Zezinho do Bigode, informou que o Jornalista  Chico Costa , que havia feito o artigo sobre Novitória, poderia lhe ajudar e deu o número do telefone para Juca Prado.  E assim, os dois combinaram uma ida à cidade, para aprofundar aquele mistério.

Foram até Goiânia e de lá,  de ônibus, caminhão, mula e a pé, após três dias inteiros conseguiram chegar em Hidrência. Três a quatro ruas poeirentas, casinhas modestas espalhadas de qualquer jeito, um coreto na pracinha minúscula, a capela e um boteco que se autodenominava Lanchonete Pague Agora.  Ah, e uma espécie de charrete com quatro lugares movida a dois bois magros e cansados. Era aquilo o transporte público pelo qual Hidrência ficara famosa?

Os dois se entreolharam decepcionados e muito cansados. Foram até a Lanchonete que era apenas um boteco melhorado. Pediram um refrigerante e informação sobre a melhor maneira de chegar à Novitória.   Quem os serviu  foi uma mulher robusta de poucas palavras que repetiu o nome de Novitória diversas vezes, franzindo a testa. Depois os olhou detidamente, quase zangada e perguntou:

- Que querem fazer lá?

-Queremos conhecer esta cidade. Dizem que ela possui alguma coisa que faz com que as pessoas queiram morar lá. A senhora conhece?  Já ouviu falar?

-Quem aqui não conhece Novitória, moço? Todos nascemos lá.

- Ah, sim? E porque hoje estão aqui, em Hidrência?

- História comprida, moço. Não estão cansados? Vão dormir aonde? Aqui não temos hotel.

- Qualquer quarto com duas camas e um banheiro já nos serve – respondeu Chico Costa – eu escrevi uma história sobre Novitória baseada num depoimento de Carlito, o Manco.  Ele anda por aqui, mora neste lugar?

- Carlito é falador demais, não deve acreditar  em tudo que ele diz. Se pretendem dormir por estas bandas, devem falar com o vigário.  Ele tem um quarto livre que aluga, às vezes.  – e virou-se para a pia, a lavar os pratos, sem dar mais atenção aos dois.

Juca Prado e Chico Costa eram profissionais que não desistiam facilmente.  Foram até a capela, uma pequena construção branca, com uma tosca cruz de madeira no campanário mínimo, no qual não se via nenhum sino.  Bateram palmas, ninguém apareceu, entraram.   Alguns poucos bancos de madeira e nos fundos uma mesa tosca, com um crucifixo grande.  Atrás desta mesa, na grande parede branca,  uma pintura rudimentar mostrando Jesus na Cruz.  A única janela, tipo verãos, derramava uma luz suave no interior, convidando à meditação e preces. E era só, paredes nuas e num canto, meio escondido, o genuflexório.  Será que alguém ali ainda vinha se confessar com o vigário? Oh de casa, gritaram.  Olharam de um lado para outro sem ver viva alma, até que uma figura singular, metida numa batina preta engordurada, surgiu por detrás deles, saída não se sabe de onde.

-O que querem, para que tanto barulho?

- Soubemos que o senhor aluga quarto, precisamos de um para passar esta noite. Estamos muito cansados, precisamos de um banho também.

- Tenho um quartinho que alugo, às vezes, para algum viajante que se perdeu por estas bandas.  Venham ver. – saiu da capela e se encaminhou para um anexo muito rudimentar da capela.  Era um quartinho mesmo, com um sofá cama de tecido bem poído, duas cadeiras e um varal na parede que serviria para pendurar alguma roupa.

- É isso aí.  Banheiro não temos.  Tomamos banho com esguicho, água fria, ali naquela casinha e para outras coisas, a fossa fica ali adiante. – olhou-os mais detidamente -  De onde vocês vieram? Não são daqui, com certeza.
- Somos de cidade grande, padre. Eu sou diretor de cinema, Juca Prado, às suas ordens  e ele é jornalista, Chico Costa. Escreveu sobre a cidade de Novitória, que, parece, fica por estas bandas.

Ao ouvir esta palavra, o vigário quase deu um pulo para trás. – Novitória? E quem falou disso para vocês? Homessa! E para que querem conhecer Novitória?

- Eu procuro um lugar para filmar um filme de suspense e o Chico quer conhecer melhor Novitória.

- Mas não escreveu sobre ela? Como fez isso se nem a conhece? Espantou-se o vigário, cada vez mais desconfiado dos dois forasteiros.

- Foi Carlito Manco quem falou sobre Novitória, lá na cidade onde moramos. Uma noite, num bar e com muitos detalhes.- explicou Chico.

- Quem sabe não é invenção do Carlito, heim, Chico? retrucou Juca Prado – Estávamos todos bêbados e é capaz dessa cidade nem existir.  O que sei é que estou cansado, com fome, e pelo visto vou ter que tomar banho frio antes de dormir, isso sim. E por nada?

- Claro que Novitória existe, que ideia... – exclamou o vigário – Só não atino qual a razão de vocês dois, imagino que bons profissionais, desejarem  conhecê-la.

- Nós já explicamos, padre. Agora, por favor, veja se arranja outro quarto ou um colchonete para a gente poder descansar esta noite. – disse Juca Prado, começando a ficar aborrecido.

- Bom, posso ceder meu quarto, que tem duas camas e banheiro junto. Eu posso dormir em outro lugar. Só que não vai sair barato.  E pela cara de vocês, estão também com fome, não é?  Nemzinha vai preparar meu jantar, peço que aumente a comida e vocês jantam comigo. Está bom, assim?

Os dois homens ficaram mais animados ante a perspectiva de dormirem numa boa cama e jantarem decentemente. E também perceberam que o vigário sabia mais do que aparentava sobre Novitória.

O quarto do padre era bom, o chuveiro elétrico funcionava e assim, depois de retirarem toda a poeira da estrada e se vestirem com novas esperanças, foram à cozinha anexa à capela, onde uma mulher corpulenta e simpática ultimava o jantar.

O padre, animado com a possibilidade de saber as novidades através daqueles profissionais, convidou-os a se sentarem na pequena mesa de madeira encerada e  serviu uns goles de aguardente  temperada com uma frutinha da região, oferecendo pedacinhos de queijo e lingüiça frita como tira-gosto.  Mas eles estavam mesmo era de  olho na caçarola de carne com batatas, cujo cheiro atiçou ainda mais um apetite que vinha sendo enganado com sanduiches o tempo inteiro da viagem.

 Até então a conversa girava sobre as últimas notícias e boatos da Capital.  Juca explicando como seria seu filme e Chico atrás de uma boa reportagem com todas as fotos que pudesse tirar. Quando finalmente a caçarola foi à mesa, junto com arroz de carreteiro e farofa, os dois desistiram momentaneamente de conversar, e se dedicaram a saborear aquela comida estupenda e ainda por cima regada a um bom vinho que o Vigário trouxera de alguma adega particular.   Este padre sabe se cuidar... pensaram. 

Satisfeitos e um pouco zonzos com o vinho e aguardente, tentaram se acomodar nas duas únicas poltronas da salinha anexa, para terminarem a conversa iniciada antes do jantar.  O padre refestelou-se na rede e esperou Nemzinha terminar o serviço e sair para a casa.

- Bem, o que querem saber agora? Como chegar a Novitória?

- Sim padre, foi por isso que aqui viemos. Fica muito longe?

- Meio dia de jornada, se forem no carro de boi.  É nosso transporte público, invenção do prefeito em ano eleitoral.  Muito bem, o que esperam encontrar lá?
- A mulher da lanchonete disse que todos que moram aqui nasceram em Novitória. Mas não quis dizer porque saíram de lá. 

O padre suspirou, começou a enrolar seu cigarrinho de rolo, olhou firme para os dois e disse bem pausadamente;

- Em Novitória acontece uma coisa muito interessante, aliás, para mim, é meio assustador.

Os dois esperaram calados, apreciando o suspense que o padre estava dando à história.

- Lá ninguém envelhece. Colocou o pé na cidade, vai ficar com a mesma idade sempre.

- Como é isso, Padre? Ninguém envelhece, ficam com a mesma idade, com a mesma cara? Os dois quase deram um pulo da cadeira, diante do inusitado da notícia.

- Bom, o tempo ninguém para.  Mas o processo de envelhecimento é sustado.  As crianças se desenvolvem até os vinte anos, somente.  Depois ficam com vinte anos para sempre.

- E nunca veio nenhum pesquisador ou cientista estudar este fenômeno? Iriam ganhar rios de dinheiro se soubessem o que ocasiona esta juventude eterna.
- Já vieram sim, muitos, há muito tempo.  Mas o negócio não é tão simples assim.  Só funciona lá e até agora ninguém sabe a razão.

- Então era caso da cidade estar cheia de gente, não? Imagine, ficar sempre com vinte anos... suspirou Chico, já cansado de tanta vida de trabalho e amolações, vendo a idade chegar e as mazelas também.

-  Pense bem, meu filho.  Será que é tão bom assim ficar a vida inteira com a mesma idade?  Que experiências vivenciarão?  Muito poucas, no fim, não tem graça mais. Você gostaria de pular corda ou jogar amarelinha ano após ano?  Onde fica a curiosidade humana, a busca de desafios, a vontade de  construir uma família, uma fábrica, uma locomotiva... Ninguém com 20 anos têm esse conhecimento, essa experiência que se adquire com muitos erros e acertos e que só o tempo pode oferecer.

- Mas padre,  pelo que entendi, o cérebro permanece também com a mesma idade? Não dá para aprender coisas novas?

- Pelo que sei não dá para aprender mais nada.  Esta é a razão de muita gente ter se evadido de Novitória.

- E como se entra e como se sai de lá, padre? Perguntou Chico Costa, já imaginando como faria uma reportagem sensacional naquela cidade tão diferenciada.  Preciso apenas de mais informações e acho que o vigário conhece tudo por lá.

- Bom, aí é que está o mistério do caso.  Vamos dizer que você, com quase sessenta anos, Chico Costa, entre na cidade.  A cada ano que passar lá, vai remoçando até chegar aos vinte anos. Todo seu conhecimento e vivência serão apagados de sua cabeça.  As reportagens que fez, o que aprendeu nas gráficas e na elaboração de um jornal, tudo isso vai-se embora. Você entra em Novitória como se tivesse vinte anos e daí não vai passar.  Ainda acha que é tão bom?

- Pensando bem, padre, chega a ser assustador. – comentou Chico. – E como se consegue sair de lá?

- Fugindo, meu amigo e não é fácil.  Os moradores não querem que ninguém sáia de lá e eles próprios não querem envelhecer.  Vão ficando, levando uma vidinha medíocre, tentando sobreviver com o que sabem.   A única esperança que eles tem de prosperar um pouco é quando chega gente de fora.

- E por que, padre? Perguntou Juca Prado, entretido consigo próprio a respeito do tipo de filme que queria fazer naquela cidade tão misteriosa.

- Porque as pessoas quando chegam lá, já possuem uma rica bagagem de conhecimento, experiência e vivências que leva mais ou menos um ano para serem esquecidas, o tempo em que se está remoçando.  Enquanto isso, os moradores usufruem disso tudo e a vida deles fica muito mais alegre e com mais sabor.

- E eles chegam a prender pessoas que querem ir embora?

- É o que diz quem vem de lá.  Mas acredito que, enquanto durar o tempo de remoçar, um ano mais ou menos, eles vão ser muito bem cuidados e guardados a sete chaves, porque estão levando conhecimentos que ninguém lá possui. Depois, já estarão com vinte anos, acabam se nivelando com as pessoas do lugar.

- Então, pelo que entendi, os moradores de Novitória querem segurar lá, quem entra agora, quem vai levar um ano para se tornar jovem outra vez, não é?

- Isso mesmo, meu filho - respondeu o padre já bocejando – Tomem pois, muito cuidado, vocês são carne fresca, como se diz.  A menos que queiram ficar com vinte anos outra vez. Acham que vale o preço?

Os dois se entreolharam e acabaram abanando a cabeça, um pouco tristes.  Quem não quer ser moço outra vez?  Ter o vigor, o entusiasmo, um pouco da irresponsabilidade da juventude?  Mas ficar parado no tempo e no espaço, mesmo jovem e belo, não queremos não - responderam quase juntos. É um preço muito alto para não ter mais rugas no rosto, disse Juca brincando.

- Toda idade tem sua beleza própria, meus filhos.  Lembra a moça da lanchonete? Ela nasceu e morou em Novitória, sempre jovem e bonita, até que se enrabichou por um cantor que apareceu por lá.  Não esperaram um ano para ele remoçar; na verdade ela gostou dele exatamente porque parecia mais velho, mais experiente e mais sábio que os rapazes que lá moravam.   Com dois meses armaram a fuga, aproveitando a entrada de um grupo de senhores. Abriram a lanchonete e começaram a trabalhar juntos. O negócio deles prosperou, mas em um ano ela envelheceu tudo que devia ter envelhecido  naqueles anos todos em Novitória.  E não se arrepende nem um segundo. Repare que ela não gosta de falar disso.  Para ela foi realmente um tempo perdido, embora fosse tão bela e jovem como uma miss.
-Acho que vou fazer um belo filme baseado nesta história toda, padre. Mas minha curiosidade para conhecer esta cidade acabou de vez.

- Também perdi o interesse, amigo.  A vida foi feita para ser vivida e é muito bom encontrar velhos amigos, relembrar algumas besteiras e projetar algo para um futuro que a gente sabe que vem.  Qual a graça de estar sempre fazendo as mesmas coisas, com as mesmas pessoas, como figura de calendário? Jovens e belos, mas parados como manequins.

- Bom, vamos dormir,  que amanhã, com certeza, estaremos um dia mais velho. –disse o  vigário se levantando com esforço da rede, ainda com seu cigarro de rolo. – A velhice tem também seus encantos, meninos.  Onde vocês pensam que vou dormir agora? Naquele sofá-cama com tecido puído de molas gastas?

Os dois se olharam e começaram a rir, pensando na cozinheira do padre.

-Há sempre um chinelo velho para guardar um pé cansado – disse o velho vigário rindo.