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O MEDO - APREÇO À VIDA - Oswaldo Romano


GUERRA É GUERRA          

O MEDO - APREÇO À VIDA

OSWALDO ROMANO              


Por volta de 1937, quando o norte da Europa experimentava um período de calma e crescimento, a Alemanha no seu centro geográfico incomodava-se ver suas fronteiras tão apertadas.

Aconteceu que isso tudo provinha da cabeça do seu principal dirigente, um louco, apoiado pelos comparsas que unidos formavam uma enorme corrente de selecionados seguidores.

Mas na ramificação do seu povo, os anos criaram uma descendência que agredia suas origens, e resquícios de sangue que corria em suas veias comprometiam a raça superior. Queriam uma raça melhor.

 Lançando um olhar por cima, realmente suas fronteiras estavam pertos. Tinham que expandi-las.

Corria o ano de 1939. Deram inicio a sua expansão, provocaram a deplorável explosão da segunda grande guerra, crentes na vitória final.
O personagem desta história, Sr.Max, era um assentado cidadão polonês, agrônomo, ferrenho trabalhador, uma virtude de todo aquele povo. Vivia no oeste do seu país e com dignidade mantinha sua família. Além da mulher Fryda, tinha as filhas Anne e Haline. Em suas terras cultivava a beterraba, resultado de importante pesquisa do século XVII quando esse tubérculo ali era a principal matéria prima para o fabrico do açúcar.

Tudo transcorria assim quando a invasão dos nazistas naquele 1º de setembro, surgiu destruindo, saqueando, aproximando-se de suas terras. Os soviéticos que, num terrível inverno, entraram pelo norte da Polônia a fim de conter a perigosa invasão, não chegaram a tempo de salvá-los.

O exército nazista avançava como uma enorme vaga oceânica, liquidando ciganos, perseguindo seitas, embarcando judeus. Ao nosso personagem, o Sr. Max não restava outra decisão a não ser defender-se. Seguindo os milhares de compatriotas, alistou-se voluntário no exército polonês. Antes, protegendo a família mandou-a para longe do agressor. Marcaram na América do Sul, o Brasil, como a terra onde os remanescentes juntar-se-iam.

E foi nesse clima desditoso, que o Max recordando suas passagens, me contou o seguinte episódio, que reproduzo na sua essência, quando juntos bebericávamos:

No dia que se apresentou no quartel, a temperatura estava fria, alguns graus negativos, e uma das coisas que agradeceu foi receber como parte da equipagem, um par de botas forrado de lã, solado duplo, meio cano, couro de boa qualidade, excelente proteção para os seus pés, os que mais sofriam. Essas ele amou.

Tinha que lutar com bravura, lutar e lutar.

No segundo combate, pasmem, foi uma tristeza. Dizimados impiedosamente num sangrento e desigual encontro, sustentaram-se no retumbante inferno até o anoitecer. Tombavam, formando pilhas de corpos numa tétrica, escura e úmida trincheira levantada para proteção, enquanto os nazistas, com porte de superiores, e acentuado paroxismo, avançavam atropelando, ignorando aqueles desgraçados moribundos.

 No meio desse amontoado de cadáveres, ouviam-se profundos lamentos, zoadas fúnebres incorporavam-se ao matraquear da batalha, e ali derribado naquela úmida trincheira, estava nosso personagem, o corajoso voluntário Max. Só que enrustido e ainda vivo, controlando uma aflitiva tremedeira.

Tinha a cabeça e corpo jogados para baixo e as pernas esticadas para cima apoiadas no barranco. Perfeita caracterização! Ninguém diria que aquele homem fingia. Teatralizava, mais valia um ator vivo que um herói morto.

Dos soldados nazistas que marchavam à beira daquela vala, um deles, mal encarado, muito encapotado, subitamente estancou. Ali parado, com seu capacete luzindo as intermitentes explosões, olhava o Max enquanto manobrava seu fuzil.
Max queria viver. Injustiça! Injustiça, depois de passar tanto medo e perigo, tinha se aguentado até então, e agora sentia ter chegado seu fim.

Não, ele não pediria clemência para aquele impostor. O soldado então, ajoelhando-se, virou o fuzil em sua direção firmando-o com o braço. Querendo ter certeza que realmente ele estava morto, fitou-o por instantes, preparando possíveis tiros. A arma escorregou, não se firmou na mão.

Apavorado o coitado deduziu:

— Seriam os de alívio, de misericórdia? Duvido que esse tirano tenha complacência.

Estava nesse transe quando de súbito, o soldado deu-lhe vários e fortes tapas nos calcanhares.

O susto foi tanto que por momento o imobilizou. Do contrário teria se denunciando.
O soldado sacudiu violentamente suas pernas como querendo acordá-lo. Max manteve-se firme no controle da respiração, contida, evitando expelir o vapor do frio. Mantinha o corpo mole, quase morto. Agora o militar usando força, tentava arrancar-lhe as botas.

— Que sádico! Estúpido! Justo as botas!

Porém, nosso homem disfarçava o que podia, mas instintivamente pressionava os dedos dificultando o agressor, esperançoso de uma miraculosa desistência. Foi em vão. Sacou uma espada levando-a na sua direção. Max, olhos inertes abertos, ia gritar para apagar a dor. O brilho do metal refletiu no seu rosto O alemão foi mais rápido, usando a espada, rompeu os cadarços da bota. O soldado às queria de qualquer jeito. Foi por elas que ali parou! Max soltou os dedos que as prendiam. Nessa tentativa final, o agressor conseguiu seu intento. Continuou andando e atirando.

Triste o Max desabafou: — Foram-se minhas botas... Elas eram tão quentes!...

Ao contar, dava pena sua expressão. Se transportava.
Ambos sérios, caímos em profunda reflexão sobre a dolorosa situação vivida neste mundo, mundo muito, muito cão.

         Quando a guerra terminou Max veio para o Brasil, encontrando-se com familiares e suas filhas Anna e a Halina que depois de ter passado pelo Teatro de Balé Bolshoi, conquistou fama no Brasil com seus Spas. Hoje é nossa companheira aqui no Clube AP, conhecida como Ala. As passagens delas, desde os Campos de Concentrações aos maiores sofrimentos, foram agraciadas quando puderam de novo reunir-se no Brasil e começarem novas vidas, desprovidas de tanto medo e incertezas.

Livres montaram nova moradia, diferente da linda casa, estilo campestre que tinham na sua Polônia, mas iluminada, sem medo de reconstruir o lar, e poder ir e vir.

Tínhamos tomado uns goles. Imaginando a cena, já sentindo o álcool, ri a gosto lembrando o desfecho das botas. Ele parou num olhar perdido, indignado procurava descobrir do que eu ria. Desconfiando ensaiou um sorriso forçado, e com profunda gargalhada, disse quase gritando: Já potrzewalem tego. Logo achei que ele não gostou. Ai ele completou:— Eu precisava disso. Eu precisava me aliviar. E continuou sua gargalhada.


(SINOPSE de UM CONTO DO MEU LIVRO “CONTOS CONTIDOS”)

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