UMA
BOA MENTIRA.
Mario Augusto M. Pinto
Moro quase na divisa de
Copacabana com Ipanema e frequento o Jardim de Alá. Sou jornalista free lancer e estou aguardando uma senhora para
continuar uma entrevista sobre a agitada vida dela. Sá para registro, essa
senhora deve estar na casa dos setenta, é bem posta, alegre e desembaraçada,
tem bom gosto, simples no vestir e calçar, é um bom papo e meia coquete.
Aí vem ela:
-Bom dia Dona Berta. Como vai?
-Berta não. Aberta, esqueceu?
-Desculpe, é que o nome...
-Sei, é meio estranho né, mas é
assim mesmo.
Jogamos conversa fora por um
tempo e aí eu disse:
-A senhora quer continuar o que
estava me contando na semana passada ou quer que eu faça perguntas?
-Eu prefiro contar, fazer um
resumo e continuar.
-OK. Tudo Bem. Quando quiser
pode começar.
E ele contou:
-Faço um resumo do que já lhe
contei que é pra recordar: meu pai era alemão, engenheiro ferroviário e veio
pra cá fugindo da guerra. Casou-se com minha mãe, brasileira, mas de pais
alemães. Lutaram com muita dificuldade. Aqui não havia interesse em construir
ferrovias. Já imaginou? Bem, resolveram ir para a Alemanha. Eu, já di maior,
não quis ir e fiquei por aqui mesmo, no Rio. Me deixaram um pouco de grana e se
mandaram. Fui morar com umas amigas perto da favela do Pinto. Ali comecei
a gostar de roda de samba e virei sambista da Escola. Aprendi uma porção de
coisas da malandragem.
Fazia as melhores batidas da
Escola. Vendia, mas o problema era receber. Então busquei um lugar pra fazer e
vender. Encontrei aqui na edícula e na garagem da casa da Dona Zizi, na Barão
da Torre.
-Que Dona Zizi, perguntei.
-Você não conhece? A viúva do
Juiz Queiroz. O aluguel da garagem serve pra pagar a ração dos cachorros. Bom,
combinei com ela e coloquei uma faixa no portão: PINGUERIA ABERTA. TRIO
POR 50. SEM TROCO. Eram batidas de limão, coco e maracujá. Só. Não fazia
outras. Colocava numas garrafinhas bem pequenas de guaraná e só vendia de trio
por cinquentão. Era para não ter que dar troco. No começo foi difícil,
mas logo, logo a freguesia aumentou e eu vendia de seis a oito conjuntos por
dia. No sábado eram mais de dez. No domingo não vendia. Fui levando a vida,
preparava as batidas, punha dinheiro no Banco, dançava na Escola e namorava o
Pedro Pedregulho, o melhor cara numa cama e que me fazia gemer na rampa.
-Gemer na rampa? O que é isso?
-Você se lembra do caminhão
FeNeMe apelidado de bobão?
-Sim, o que é que tem?
-Era bobão porque não enjeitava
carga, mas quando pegava uma subida, ia, mas gemia nhé, nhé, nhé. Então, quando o Pedro fazia amor
comigo, na terceira vez de uma só tacada eu gemia alto e ele ria dizendo: geme na rampa amor, geme...que
gostosura.
O caso é que fiquei sendo
conhecida e vinha homem de todo lado pra dançar comigo, beber minhas batidas e tentar
sair comigo. Nem pensar nesse negócio de cerveja e camarote.
Um dia um cara alto, bonitão
pediu pra dançar comigo. No primeiro gingado ví que não entendia nada do
riscado. Não acompanhava. Sabe como é? Numa hora ele disse que tinha um amigo
que também queria dançar comigo. Disse pra ele mandar o cara vir. Ele me disse: Não precisa falar com ele, basta
dançar. O cara veio, branco
que nem vela e me foi apresentado Este
é o Mister. Dançamos, fiz
tudo que podia, segurei ele e tal, mas não adiantou nada. Foi embora dizendo
umas coisas que não entendi, mas ficou na cara: foi embora e olhava pra trás;
ele gamou, gamou de fraque e cartola, de vez, até o pescoço. Eu tinha
certeza... No dia seguinte o pirulão apareceu outra vez junto com o amigo. Eu
sabia o que eles queriam, mas querendo disfarçar, o pirulão disse que queria
comprar dois trio, um pra cada um. Botou a nota no balcão e disse que queria
conversar num lugar tranquilo. Não sou boba nem nada. Levei os dois pra minha
Pingueria e fomos pra cima onde era o meu quarto. O grandão disse que o Mister
queria ficar a sós comigo; foi embora correndo. O branquela fez sinal que
queria dançar. Botei um disco pra tocar, peguei o cara e meti-lhe um ziriguidum
que não tinha jeito. O cara ficou maluco. Me apertava, me beijava, me apalpava
em todo lugar e eu aguentando. Bem, resumindo a opera, fomos pra cama. Dessa
vez eu fiz o cara gemer na rampa.
Ele queria mais, mas chegou o
grandão e disse que precisavam ir embora. Os dois se foram com o branquela
falando entusiasmado. Depois, no balcão, encontrei uma caixinha com um
broche bem bonito, Ó, é este. Viu? Contei pra Zizi o que tinha acontecido e ela
disse : Não é de estranhar.
Com seu jeito, esse corpão e bumbum de sobreloja não há homem que resista.
-Bumbum de sobreloja? O
que é isso, disse eu.
-É coisa do Ziraldo. Ele disse
que pra saber se tem ou não bumbum de sobreloja, a mulher deve deitar de bruços
na areia, cabeça na direção do sol. Se a curva do bumbum fizer sombra na
parte detrás da coxa, a mulher tem bumbum de sobreloja. Eu tenho ele moreninho
do sol e puxo a calcinha do biquíni pra aparecer um pouquinho do branco da
pele; fica sexy e bem bonito. Apesar da minha idade os homens não
resistem...homem é bobalhão mesmo, não?
Bom, estava na minha vida
fazendo trios, bailando, guardando dinheiro, chorando na rampa com o Pedrão
quando apareceu de novo o grandão bonitão lá na garagem. Disse que o amigo dele
sentia muita saudade e queria me ver. Pra isso faria um cruzeiro no barco dele.
Morava fora do Rio, prometia hospedagem completa pelo tempo que eu quisesse,
mesada e tudo pago. Era só concordar.
Falei com a Zizi e ela disse
pra eu aproveitar, mas que devia ter meu dinheiro pra poder voltar na hora que
eu quisesse, ver e aprovar as coisas antes de fazer ou receber, etc. O
grandão veio, dei minhas condições e disse que ia. O cara abriu um sorriso de
um quilometro e disse Eu me
chamo Toni; sempre que precisar Você pode telefonar pra este numero. Precisa levar uns trios
pro meu amigo. Foi a primeira
vez que ele disse o nome dele. O negócio ia começar no estrangeiro, disse ele.
Bem viajamos e fomos a Paris. Eu não acreditava, parecia um sonho. Ali eu disse
que queria ver um show num teatro muito celebre. Fomos. Moço, tinha um montão
de mulher mostrando os peitos e penas e mais penas na cabeça, na cintura e no
bumbum, rebolando e cantando musicas muito bonitas. Me lembrei da Virginia Lane
do teatro rebolado do Walter Pinto que a gente tinha aqui no Rio. Eu entendia.
É. Entendia. Nâo te contei, mas durante um tempão a Zizi me ensinou francês e
eu aprendi e falo muito bem. Eu conhecia a musica. A Zizi me ensinou.
Dizia:
J´ai deux amours
Mon pays et Paris
Tralalá, tralalá
Laralá, laralá
Bem, não preciso dizer que o
branquela veio ficar comigo. Passamos a nos falar em francês. Me levou pra uma
casa dele e disse que eu ia morar ali. Morei um tempão e um dia ele me disse
que duas senhoras queriam me conhecer.
Fomos pra casa delas que eu chamava
de Casão. As duas senhoras eram muito simpáticas, também falavam Francês e nos
demos muito bem desde o primeiro dia. Eu sempre devia chama-las de Madame.
Acabaram os trios. Passei a
fazer outros com gim, mas ficava ruim. As duas senhoras sempre muito elegantes
não gostaram; delicadamente me disseram: Ça
ne va pas. Fiquei
chateada.
Falei pro Toni. Ele disse que
sabia onde vendiam a pinga! Ele sabia o nome, o lugar, tudo! Safado, nunca
disse nada. Passei a fazer trios de limão, coco e de frutas. Fritava
linguicinhas, batatinhas e lulas. Tudo era novidade pra elas e eu
caprichava.
Um dia elas me convidarem pra
morar ali, num lugar separado.
Falei pro Toni perguntar pro
Mister. Dias depois ele disse que o Mister concordava. Mudei de mala e cuia pra
Casona.
Aos poucos fui me adaptando ao
ritma de vida na Casona. Falei pro Toni que sabia quem eles eram, os nomes,
tudo. Será que podia chama-los pelos nomes? Recebi um sonoro e retumbante NÃO, NÃO PODE E NUNCA SE ATREVA!!! Depois dessa fiquei na minha
e fui tocando. Dei aulas de samba e ziriguidum pra um monte de gente. Pra ter o
que fazer alonguei a quantidade de aulas. Comecei a aprender alemão, a cavalgar
e quando disse que queria aprender a jogar polo olharam pra mim como se eu
estivesse louca. Imagine!!!
Vários dias da semana a mais
moça das duas Madames recebia uns homens e ficava falando muito tempo com eles;
lia e assinava papeis. No fim da conversa ela servia chá com uns bolinhos. Um
dia ela pediu pra eu ficar na sala e ver como ela servia o chá. Eu fiz e ela me
treinou pra servir pra todos, só que o dela devia ter umas gotinhas do trio. Eu
servia o chá, os convidados geralmente pediam creme ou leite e no dela eu
pingava umas gotas do trio. Ela depois me contou que dizia pros convidados que
era um remedinho.
A vida ali continuava sempre no
mesmo ritmo e eu comecei a me chatear. Falei pro Toni e logo depois recebi
vários convites pra passear de barco ou viajar pra outras cidades. Mesmo assim
aquela situação não podia continuar indefinidamente. Era cansativa de tão
repetitiva e falei pro Toni que queria voltar pro Brasil. Ele depois me contou
que isso provocou um fuzuê danado. Disseram que iam dar tratos a bola pra
minha estadia ser mais alegre. De fato, se esforçaram: promoveram festas,
torneios, passeios, pescarias e outas coisas mais, mas não adiantou. Eu queria
voltar pro Brasil. A despedida foi de final de novela: todo mundo triste quase
chorando. Foi de amargar. Na verdade eu passei a gostar daquelas pessoas e suas
coisas...Voltei ao Brasil e ainda recebo visita do Toni e do Mister. Eles vem
meio escondidos.
-Mas Dona Aberta a sua história
não terminou assim tão simples, não é mesmo? Há mais coisas que a Senhora
viveu e pode contar.
-É verdade. Tem a historia do
cara que se dizia deputado federal
-Conta; essa eu até posso
mandar pra Brasilia. Conta,
-Eu estava na Pingueria quando
apareceu um cara e, sem cumprimentar, pediu dois trios. Pegou, pagou e foi
embora.
Voltou várias vezes e repetia a
mesma coisa: pedia dois trios, pegava, pagava e ia embora, mas havia uma
pequena diferença: elejá estava ficando um tempinho antes de ir embora e esse
tempinho foi aumentando. Eu pensava: Não vou com a cara dele mas esse cara quer
arrastar as asas comigo. Preciso ter a resposta na ponta da língua pra quando
ele se manifestar. E chegou o dia:
-Dona Aberta, dois trios, aqui
está a grana. Posso lhe pedir uma coisa?
Lá vem ele, pensei eu e disse Claro, o que é?
- Estou sozinho e meio carente.
Eu quero convidar a Senhora para passar este fim de semana em Brasilia.
O topete do cara. Claro e
direto! Tive que me segurar pra não ir ás fuças dele. Pensa que só por ser
deputado pode fazer uma coisa dessas e logo comigo que nunca lhe dei confiança!
Faço pilantragem, mas tenho educação e respeito as pessoas. Não misturo com
negócios. Tá de acordo?°
-Claro, disse eu. O que a
Senhora fez ou disse?
-Disse: Olha, doutor, não vai
dar não.
-Por que não? Insistiu ele.
Aí, moço, perdi as estribeiras
e gritei: Porque estou de mensalão.
Pode ir embora que eu não vou.
Ele ficou assustado com minha reação e foi embora correndo e cantando pneu.
-Mensalão, Dona Aberta? O que é
isso?
-Homem é burro mesmo. A mulher
não tem um negócio todo mês?
-Tem. É a mens...
-Não fala!!! Detesto a palavra!
Mulher pra mim tem mensalão e pronto! Entendeu?
-Sim, mas o que ele...
-Mas, nada. Você não lê
jornais?-Era o cara...Adotou a palavra e não me paga direitos autorais.
-Ora, Dona Aberta. Assim já é
pedir demais.
-Pode até ser, mas não
concordo. Olha, preciso ir preparar os trios pra amanhã ganhar um dinheirinho.
Tcháu, muito prazer.
-Dona Aberta, Dona Aberta,
disse eu, vamos marcar novo encontro pra Senhora me contar mais coisas e eu
publico tudo de uma vez só.
-Não vale a pena, moço. Vão
dizer que é história, invencionice. Não cai nessa. É uma fria.
Quem vai acreditar na sua entrevista
com uma sambista que servia batidas pras velhinhas,... Ninguém...E com
isso foi-se embora.
Não publiquei nada, mas passei
a tomar o Trio Aberta de Batidas.
Mario Augusto Machado
Pinto 19-04-2.013
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