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Casamento? - Mario Augusto M. Pinto




CASAMENTO ?
Mario A. M. Pinto

Nós nos encontramos às quintas–feiras para tomar café, comentar algumas notícias da semana, contar piadas e encontrar assunto para falarmos durante algum tempo sem compromisso com nada e com ninguém, só que hoje o cara soltou o mau humor todo da semana de uma vez só. Ele fala, gesticula, arrasta a cadeira, até dá tapas na mesa e já derrubou uma xícara de cappuccino. Está incrível de agitado. Já o vi assim há alguns anos quando discutiu em publico com um vereador e arrasou o cara. Chegaram às vias do fato e tive que separar a briga. O cara estava louco de bandeira, eu nunca tinha assistido coisa igual.

Hoje ele já está falando há mais de hora.  Nem sei como o assunto começou, só sei que ele começou contando e fiquei sabendo detalhes sobre sua vida desde quase seu nascimento até os dias de hoje quando está idoso – digo assim porque não sei bem a idade dele. Estou convicto de que estava desopilando o fígado da sua existência com bílis e tudo. O impressionante é que fala sem parar e quase que seguindo uma cronologia. Diz do colégio, da faculdade, de colegas, amigos e das namoradas. Algumas eu conheci: todas tinham corpão e eram bonitas. Benza Deus. Nesse particular o cara tinha muita sorte ou sabia escolher muito bem.

Estava meio desligado, mas agora está começando a falar da sua vida de casado, como tudo começou.

Pensei comigo mesmo: Cristóforo Colombo!!! No estado em que esse gajo está vai ser de lascar!!! Que pecados tenho para ouvir essa história? Não há escapatória: só tenho que ouvir.

Diz ele: Tudo começou no estalo, no dia e na hora em que a vi pela primeira vez. Disse para mim mesmo: é com ela que vou me casar. E foi. Nosso namoro foi de uns três anos, de estudantes, morando um longe do outro. Eu não tinha carro de modo que falávamos diariamente por telefone e geralmente íamos ao cinema aos sábados e domingos, sempre com outros casais de amigos e com hora certa para ela voltar para casa.  Gozado, lembro que chegamos a tomar chá no Mappin e na Confeitaria Alemã na Rua Barão de Itapetininga. Ambas tinham pequena orquestra no salão. Era muito chique. Eu já estava trabalhando quando estudava e ficamos noivos. Ela, de família de posição econômica melhor do que a minha, levava vida de pequena burguesa, ia ao cabeleireiro, à costureira, estudava violão. Fez até curso de cozinha! 

Coisas assim.

Seis meses depois de minha formatura nos casamos. Viagem de núpcias curta de acordo com o meu dinheiro curto – por aqui mesmo. Fomos morar na casa dela. Não tenho queixa nenhuma disso; ninguém dava palpite na nossa vida. Tivemos um casal de filhos. Pouco participei da vida deles.  Solucionava os problemas domésticos à medida que apareciam e me dedicava ao trabalho, exaustivamente, a qualquer dia, qualquer hora, em qualquer lugar. Culpava os outros não conseguindo os resultados que queria, mas culpava convicto. Sempre os outros. Isso tudo foi causando meu afastamento da família, imperceptível no começo. Minha mulher constatou isso antes e me avisou e comentou várias vezes e eu sempre dizia que ela tinha caraminholas na cabeça. Acontece que o nosso relacionamento foi se deteriorando. Discutíamos muito, acaloradamente, aos berros. Era um horror, mas eu sem perceber minha teimosia e cegueira aos fatos achava que estava certo e continuei me comportando da mesma maneira. Não percebi direito meus filhos crescerem, terminarem as faculdades, começarem a trabalhar. Mas depois de algum tempo o trabalho já não me satisfazia; para evitar questionamentos ficava mais tempo no escritório, chegava cada vez mais tarde para jantar, procurava derivativos. Imagina que eu passei a ler por inteiro o Diário Oficial do Estado! Fazia queixas cada vez mais constantes, a qualquer empecilho colocava a culpa nos outros, nos colegas, nos auxiliares. Ela percebeu essa nova faceta do meu comportamento:  eu estava passando do autossuficiente que dizia ser e fazia o que julgava certo sem se importar com a opinião dos outros,  para um sofredor de humilhações feitas por terceiros. Acho que quando ficou preocupada demais das minhas lamúrias recomendou-me consultar um psiquiatra que ela mesma procurou e indicou. Não percebi que ela estava querendo me ajudar! Eu fui, mas nada dizia ao dito cujo porque continuava achando que eu estava certo e os outros errados. Nem me dei conta do que se passava comigo quando o psiquiatra disse que pelo que eu dizia eu não precisava da ajuda dele. Como chamar isso? Ignorância, burrice, cegueira, teimosia?  Não sei; o fato é que continuei na mesma. Nem notei a mudança de comportamento de minha mulher, dos nossos filhos, dos casais amigos, dos conhecidos. Pra mim eu era o non plus ultra do pedaço e pronto. Os incomodados que se mudassem e eles se mudaram. Deixei meu trabalho de quase trinta anos na firma da família e passei a trabalhar em outras empresas com o mesmo gênio do cão e fui despedido várias vezes.  Mudei de atividade, passei a dar consultoria e me senti melhor: é que eu colocava minha análise, minhas recomendações e indicações. A solução era minha. Se não seguiam minha indicação final “agazagar sedeu”, iriam continuar tendo encrencas; o problema de aceitar ou não era dos outros. Dos outros! Gozava quando tinham encrencas. Não me queixava demais ou de menos. Os filhos se casaram, saíram de casa e fiquei só com minha mulher, mudei meu comportamento só um pouquinho.  Continuei autossuficiente e olhando meu umbigo. Nem me dei conta de quando parei de dar consultoria: foi aos poucos e, de repente, parou. O “e agora o que vou fazer?” que todo mundo pensa ou fala foi posto de lado; não me preocupei; a solução chegaria. Ainda não chegou. É uma “méldia”? É, quero ajudar a chegar, mas não sei como fazer. Agora estamos brigando cada vez mais, mais intensamente, já chegamos aos gritos, a ofensas familiares e pessoais. 

             Confesso que cheguei a ter vontade de agredir minha mulher tão grande era meu desconforto por ser apontado e acusado como culpado e não aceitar a culpa. O abatimento moral é grande. Fica de pouca duração, é que evito contato com ela e falo só o indispensável. É assim que agora temos levado nossa vida. Graças a Deus os filhos não se põem no meio desse imbróglio todo apesar de minha mulher falar com minha filha. Minha mulher me diz que minha presença a atormenta, que lhe faz mal. Percebo tudo isso e procuro mudar e tenho mudado algumas coisas de meu comportamento, mas sei que isso pouco ou nada importa na opinião dela. Sei que está chegando a hora de uma decisão final a respeito dessa situação, mas eu não sei o que fazer para não haver um rompimento definitivo entre nós. Não é bem a situação de se ficar o bicho come se correr o bicho pega, mas eu não quero romper com ela. Podem dizer o que for, eu ainda gosto dela com todo o pouco caso  demonstrado sem reserva por ela, com as coisas que faz sem pedir minha opinião – a bem da verdade digo que ela comunica algumas delas. Eu sei que preciso mudar. Mudar tudo aquilo que consciente ou inconscientemente sei que a desagrada, observar, notar como reagem as pessoas mais chegadas a nós, ser mais cordato, ficar de boca fechada quando pinta aquele clima de cachorro louco entre as pessoas. Externar poucas opiniões, de preferência dar um sorrisinho quando perguntado, aproveitar que todos sabem que sou meio surdinho, fazer de conta de não ouvir a pergunta ou uma opinião diametralmente oposta à minha, não ser notado, ter cor do burro quando foge... Mas eu me pergunto: tem que ser assim, mudar tanto, engolir sapos ás pampas, sim porque as pessoas, hoje, não são muito inteligentes,  viver no faz de conta quase no fim da minha vida? 

            Ele olha pra mim buscando uma resposta que, depois desse desabafo, não sei e nem posso dar.

            Fico olhando pra ele com um sorrisinho na boca. Pra falar alguma coisa digo:

-É...

-É, uma ova! Você bem que pode ajudar a me centrar, mas tem medo de encontrar a chave. E não vai  contar pra ninguém se encontrar É sempre assim. Vai, pede a conta que eu pago pelo aluguel dos seus ouvidos.

             Com ele de mau  humor fomos embora com um “Tchau, tudo de bom. Um abraço. Até quinta”.

            Eu me pergunto: Como será na próxima quinta? Veremos, veremos, diria um cego. E um surdinho?
           
Mario Augusto Machado Pinto.                         março 2.013.
marioamp@terra.com.br

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