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ROTEIROS PARA TEATRO

A CARTOMANTE (NOVO ENFOQUE) - YARA MOURÃO

  




A Cartomante

(Novo enfoque da personagem)

Yara Mourão

 

Pensamentos são um turbilhão de emoções quando se está no meio de um furacão. Assim se via Cecília; tudo sendo muito nebuloso, incompleto e sem solução. Procurava, sem descanso, uma alternativa para esse estado de espírito. Queria uma porta de escape para poder esclarecer seus sentimentos.

Em meio a muitas conjecturas lembrou-se de Simone, sua amiga de juventude, companheira de muitos anos. Nessas recordações, sorria para si mesma, sentindo-se entre as moças da faculdade, acalmando o coração com boas lembranças.

Ela e Simone sempre se deram bem por tanto tempo.  Agora a amiga morava em Buenos Aires, lembrou, fechando os olhos em meio a tristeza que isso trazia. Mas estava determinada a agir e se animou para passar uns dias naquela cidade com Simone.

Agitada e esperançosa combinou um encontro e se preparou para a viagem. Considerou que Raul ficaria bem, afinal ele tinha ainda boa autonomia.

As horas atropelavam o humor e criavam uma auréola de boas energias; Cecília tinha a expectativa adolescente de dias inesquecíveis, passeios e compras, conversas até altas horas…

Em Buenos Aires

Simone foi hospedeira e cicerone exemplar, oferecendo à amiga conforto, acolhimento e passeios pela bela cidade portenha.

Assim, passaram — se os dias em suave torpor; curtiam restaurantes, shows de tango, feiras de artesanato. A programação era intensa, meio nervosa até, embutindo certa pressa para se fazer tudo e concluir logo aquela estadia.

Cecilia percebia Simone solicita, porém, reticente, escolhendo cirurgicamente os locais e horários dos passeios, como que evitando qualquer chance de constrangimento. O celular era uma fonte de ansiedade, a amiga pisava em ovos da manhã à noite.

Até que Cecília se desse conta de que algo era muito estranho.

Foi então na exposição de arte moderna, num belo museu no centro da cidade, que o fato se deu.

Em meio aos muitos visitantes, Simone e ela passavam pelas galerias a passos um tanto apressados. Cecília ficou desconfortável com esse modo de apreciar os quadros, e se reteve propositalmente diante de uma grande tela, ao final da sala principal, como que analisando cada detalhe da obra. Percorrendo o ambiente com um olhar de gata assustada, Cecília visualizou uma silhueta bem conhecida, de um homem apoiado no pórtico à saída da sala principal.

Um estremecimento a fez se segurar para não cair. Sentiu-se congelar sem qualquer gesto que a fizesse ser socorrida.

“ Sim”, conseguiu concluir, era Raul ali, parado, com o celular junto ao ouvido, cabeça inclinada sobre o peito como que se escondendo dos olhares.

“Não pode ser!” pensou. “ Raul, aqui?”

Cecília buscou Simone para um apoio, mas a amiga estava longe, falando ao celular. Ainda trêmula, apressou-se para chegar até Simone; percebeu, incrédula, que a amiga e o homem no pórtico se miravam. Chegando mais perto, conseguiu ouvi-la se despedindo com um “até logo, amor! ” Cecília ainda percebeu, num relance, que o homem no pórtico também desligava o telefone.

Ela buscou, no fundo do coração, uma força que não tinha. Encarou a amiga. Elas não disseram nem uma palavra.

Então é verdade esse pesadelo? Simone, a grande amiga, era o amor de Raul que se consumia na distância.

“Então isso era verdade!? Os amantes se falando às escondidas no meio da multidão!”

Cecília ficou ali tal uma escultura da decepção. Agora ambos saiam pela porta do grande salão, sem olhar para trás, como se estivessem atravessando um portal para a felicidade…

 

“Ah!” — pensou Cecília — aquela cartomante que dera a Raul a chave para sua felicidade, talvez não fosse assim, tão sem eira nem beira…

Casa Cheia - Suzana da Cunha Lima

 


Casa Cheia

Suzana da Cunha Lima

 

Casa cheia, iluminada. Bela música, damas elegantes desfilando pelo salão seus vestidos e vaidades.  Ele todo emproado, no seu terno emprestado, sapatos reluzindo de tanto engraxar, tentando disfarçar a falta de berço, a escassez de riqueza e o terrível anonimato.

— Dr. Eduardo, às suas ordens.

— Ah, é médico? Qual sua especialidade?

— Cirurgião, de cabeça e pescoço.

Surpresa, elogios, seu ego se dilata. Por minutos, é feliz.

Mas sempre aparece alguém para desmontar sua farsa.

— Oi Edu.  Você por aquiiii?

Sorriso amarelo, tenta disfarçar.

— Apareci hoje no posto e paguei minha conta. Deixei com o gerente sua gorjeta. Você ainda trabalha lá?

Edu desaba. De médico a frentista não há reputação que resista.

O PROCESSO DE ESCREVER UMA PEÇA DE TEATRO



CRIANDO UMA PEÇA TEATRAL


COMO DESENVOLVER UM TEXTO DRAMÁTICO




primeiros passos


  • O texto teatral, é um texto fictício, tal qual o conto e o romance, necessita de diálogos, personagens, de cenário, antagonista, figurino, de um intrigante conflito central, e de imprevisível desfecho.

 

  • Diferente do texto narrativo, a peça teatral não requer um narrador.

 

  • Ela é escrita para ser encenada.

 

  • A história é guiada através dos diálogos e de rubricas.

 

  • As rubricas são orientações, indicações de como os personagens devem agir e reagir, isto é,  ditam a linguagem corporal / gestual em cada ação e reação, e muitas vezes indicam até o lugar onde devem estar o personagem naquele momento da cena. 

 

  • As rubricas vêm sempre entre parênteses ou em itálico.
  • Estão incorporados no roteiro: o cenário, iluminação, o figurino, e adereços. 

 

  • Como tudo acontecerá ao vivo, sem cortes, sem filtros, o escritor deve ter em mente até mesmo os efeitos especiais de uma cena. Efeitos especiais são truques para criar uma ilusão de ótica: fumaça, gelo seco, pirotecnia, maquiagem, ruídos, etc.

 

  • Há de se criar a trama com um interessante antagonista, e subtramas. Na escrita criativa, uma subtrama pode revelar mais sobre personagens secundários, criar reviravoltas na história, e até adicionar outra dimensão para a trama. Uma boa subtrama aumenta a curiosidade sobre o personagem principal.

 

  • Levar em conta o cenário, faça com que o personagem percorra o espaço destinado à peça.

 

  • Há escritores que começam a escrever o clímax da história, ou o final da peça, antes do primeiro ato. Isso, para evitar erros ou empobrecimento do texto, e para garantir que a história permaneça no rumo idealizado. 

 

  • O ideal é criar um mapa mental, ou roteiro delineado antes de começar a escrever. O esboço vai ajudar a enxergar os pontos-chave da história, e pode ajudar a construir cenas mais profundas, e até mesmo eliminar o que for desnecessário. 





COMO ESCREVER UM ROTEIRO - COM JUCA DE OLIVEIRA




A mulher assustadora do prédio da rua Chestnut - Ises de Almeida Abrahamsohn

 




A mulher assustadora do prédio da rua Chestnut
Ises de Almeida Abrahamsohn 

 

Era o sétimo apartamento que eu iria olhar. Nunca tinha imaginado tanta dificuldade para conseguir uma moradia naquela cidade. Eu estava ficando desesperada, o preço do minúsculo Airbnb era cotado para turistas.
A corretora tinha avisado que com a grana que eu podia pagar, seria difícil achar algo em um lugar razoavelmente seguro e que não fosse infestado por baratas. Combinei para as quatorze horas na frente do prédio A localização era boa, a duas quadras da região mais valorizada da cidade e havia supermercado e um café próximos. A foto do Google Maps mostrava um prédio antigo de quatro andares no número 1.707 da Chestnut.  Talvez sete fosse meu número de sorte. Encontrei Susan, a corretora, já esperando à frente do prédio.

— O apartamento fica no segundo andar, são dois por andar e não há elevador, tudo bem? Mas já está meio mobiliado, o que pode ser vantagem para você, disse com um sorriso encorajador.

Bem, nessa altura, eu já me tinha resignado a alguns lances de escada e, de fato, não ter que comprar cama, mesa e um sofá seria uma benção para as minhas finanças. A vantagem de Susan era que ela de cara entendeu a minha situação financeira de bolsista estrangeira e não tentava me convencer a alugar algo acima das minhas possibilidades como os outros corretores anteriores.
Subimos a escada de madeira que já tinha alguns degraus escavados e desbotados, mas escrupulosamente limpa, e chegamos ao minúsculo hall do segundo andar. Susan abriu a porta do 22. Bastante razoável, pensei, enquanto experimentava as torneiras e o chuveiro. Havia uma janela no quarto e outra na área da sala com boa iluminação. E a mobília estava em bom estado, assim como a geladeira e o fogão de duas bocas.

— Vou ficar com ele, eu disse para Susan, sentindo-me aliviada. Espero que não existam fantasmas nessa casa antiga. Você conheceu os moradores anteriores?
Mas Susan não sabia nada sobre os moradores.  Na verdade, o prédio era uma casa antiga reformada de três andares. O quarto andar era uma mansarda não habitada.
Mudei-me no dia seguinte pela manhã com as minhas duas malas e toda a disposição para fazer uma boa limpeza. Creio que subi e desci as escadas umas cinco vezes trazendo balde, vassouras, roupa de cama e banho, produtos de limpeza, alguma louça e talher e um forno de micro-ondas que, com a chaleira elétrica, comporiam minha cozinha. Adormeci quando me deitei ao olhar as mensagens no celular; eram ainda sete horas. Acordei por alguns minutos com um ruído persistente vindo do hall, parecia que raspavam o chão. Porém, logo caí de novo no sono até de manhã.

Cheguei às nove horas para encontrar o chefe do laboratório com o qual eu trabalharia pelos próximos três anos na minha pós-graduação em transmissão neuromuscular. Durante o restante do dia estive ocupada em conhecer pessoas e setores do instituto. Cheguei ao meu prédio por volta das cinco da tarde. No hall do primeiro andar encontrei uma mulher alta, muito magra, vestida com um vestido de algodão comprido que parecia ter saído de um filme dos anos cinquenta. Estendi a mão dizendo:

— Acabo de me mudar para o 22. Sou Ana Luísa, trabalho na universidade.

A mulher avançou o braço direito como querendo cumprimentar, mas o braço sofreu um espasmo e moveu-se para o lado. Ao mesmo tempo, uma contração dos músculos do pescoço virou a sua cabeça para o lado oposto.
Eu já havia visto pessoas com espasticidade devida a doenças neurológicas e este era um caso muito grave.

Ela fez um esforço para falar e após alguns movimentos da boca, falou.

— Não vá sujar as escadas. Eu limpo toda a noite.  Senão vai ter que ir embora.
A coitada tinha também uma voz que se alternava entre rouquidão e agudos, aparentemente incontrolável.

Não havendo mais o que dizer falei um até logo e subi as escadas.

À noite por volta das onze eu estava ao computador organizando o trabalho da próxima semana e ouvi aquele mesmo barulho repetitivo da noite anterior.

Ao abrir a porta deparei-me com a mesma mulher, que, com vassoura, balde e água com sabão esfregava vigorosamente o chão do minúsculo hall. Falei "boa noite" ao que a pessoa respondeu com dificuldade, boa noite, após várias contrações dos músculos do rosto e agitação dos braços.  Seguiu-se um:

— Compra um capacho para a entrada. E a mulher desengonçada, com dificuldade, prosseguiu o trabalho agora nos degraus da escada abaixo.
Fechei a porta e voltei ao meu trabalho. Escutei os barulhos da mulher trabalhando até a uma da manhã.

No dia seguinte, sábado, fui tomar meu café da manhã no café ao lado.
Um rapaz de uns trinta anos aproximou-se e se apresentou como o morador do apartamento 12 do andar inferior. Tomamos o café e perguntei a ele sobre a estranha mulher.

  — Ela é Jeanne. Inofensiva se você não a irritar. Mora na mansarda do quarto andar. Parece que o prédio originalmente pertencia aos avós dela. Foi o que ouvi. Os pais transformaram em apartamentos e viviam em dois deles com a renda dos outros. A Jeanne tinha essa doença neurológica desde a juventude. Quando os pais morreram os tios herdaram e permitem a ela morar na mansarda e lhe dão alguma renda para sobreviver. Mas ninguém cuida dela. Ela sofre muito com barulho, trabalha mais à noite e tem dificuldade de se deslocar. As crianças se assustam com ela, ela, mas se não a contrariam permanece calada. Tem essa mania de limpeza.

Ana Luísa sabia que com tratamento adequado Jeanne poderia melhorar muito. Havia medicação e fisioterapia para controlar os movimentos espásticos involuntários. Mas seria necessário alguém que a acompanhasse ao hospital e aos tratamentos.

Contou a história para o chefe do laboratório.  Este lhe indicou qual seria o caminho para conseguir algum apoio para Jeanne.
Afinal conseguiram assistente social e a consulta para Jeanne que após três meses estava visivelmente melhor. Conseguia falar e os espasmos dos braços estavam muito reduzidos.

A mania de limpeza continuou, mas a estranha Jeanne agora não era mais tão estranha. Conversava e não assustava mais ninguém.

 

O segredo do Castelo - Ledice Pereira

 




O segredo do Castelo

Ledice Pereira


 

Aquele casarão, encoberto por tantas árvores, era tido como mal-assombrado.

Ditinho, garoto hiperativo, era motivo de preocupação constante para os pais. Tinha sido alertado por eles para não chegar perto dali. Mas quem disse que o menino obedeceu? A curiosidade foi mais forte. Não conseguia ficar parado. Estava sempre aprontando, embora estivesse sendo acompanhado por psicólogos e psiquiatras.

O processo de tratamento era longo.

O garoto liderava a turminha de amigos, tão levada quanto ele, convenceu-os a descobrir o segredo daquele casarão.

Os adultos chamavam de CASTELO, mas pra ele castelo tinha um monte de torres e era bonito. Aquele era escuro, coberto por uma folhagem que escondia até as janelas.

Era fim de tarde. Munidos de ferramentas, que surrupiaram dos pais, aproveitaram que o dia virava noite e, intrépidos, rumaram para lá, chegando bem perto da entrada, pé ante pé.

A casa estava vazia há meses. As plantas cresciam de maneira desordenada, os galhos enroscando-se uns aos outros, formando um verdadeiro labirinto, que os meninos sentiram certo medo de ultrapassar, mas incentivados pelo endiabrado menino, chegaram até a porta, tentando, em vão abri-la.

Rui havia trazido um pé de cabra. Acontece que não tinham força suficiente para usar o instrumento.

Como a janela era alta, resolveram fazer uma escadinha humana e Júnior, o menorzinho, foi o último a subir, com a intenção de pular para dentro. Combinaram que, uma vez lá dentro, ele viria abrir a porta para os outros. Simples assim.

O pequeno, depois de muito, conseguiu pular para dentro, usando uma pequena fresta.

Nunca mais voltou.

Os outros ficaram ali aguardando, aguardando. A noite caiu insensível. A temperatura atingiu o menor grau.

Gelados e com medo de enfrentarem os pais, os meninos estavam imóveis, olhos arregalados, incrédulos, sem saber o que fazer, como contariam para eles e, principalmente, para os pais de Júnior.

Sabiam que teriam que enfrentar a realidade, afinal, haviam infringido uma regra familiar e iriam com certeza ser castigados por isso. As mães saíram a procura dos filhos, chamando-os para jantar.

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(Ditinho se vê dentro do navio do Pirata Capitão Gancho do Peter Pan) ...

 

Não deu outra.

Pela teimosia de ter, não só se aproximado do “Castelo” mal-assombrado, mas também por incentivar a turma toda a fazer o pequeno Junior entrar no local, desaparecendo lá dentro, Ditinho recebeu dos pais um senhor castigo: ficar dentro de casa, mais precisamente dentro do próprio quarto, sem televisão, sem celular, durante as próximas duas semanas de férias, inclusive, o garoto faria suas refeições ali, só tendo permissão para ir ao banheiro e para tomar banho e escovar os dentes.

O garoto estava bastante revoltado. Sentia pena de si.

– Também não era pra tanto – pensava com seus botões. Dessa vez, eles exageraram! Aposto como os outros meninos não estão sofrendo como eu. Devem estar livres para fazer novas artes. E eu aqui, tendo que ler todos esses livros que a professora mandou ler e eu não li. Uma verdadeira maldade!

 

Para o menino, a noite custava a chegar. Respirava fundo, espreguiçava-se, esfregava os olhos, bufava e nada da hora passar.

O negócio era ler os tais livros. Afinal, a mãe ficara de verificar se ele havia cumprido o combinado. Em caso negativo, ela ameaçara de deixá-lo de castigo por mais duas semanas. E ela não era sopa. Quando prometia, cumpria.

O garoto nunca vira a mãe tão brava. Sentia que ela não estava brincando. Achava que ela já não gostava mais dele como antes.

Pegava o livro, começava a ler de onde havia parado. O pensamento fugia para longe dali. Ditinho divagava...

Agora, nadava em alto mar, dando braçadas vigorosas. O que seria aquilo? Parecia uma embarcação antiga. Vinha se aproximando rapidamente.

– Socorro! Vou ser atropelado – gritou, apertando fortemente os olhos.

Ao entreabri-lo, deu com ele à sua frente. Sim, o próprio. O Capitão Gancho.

– Que homem horroroso, pior do que eu havia imaginado – pensou.

Aquela mão..., digo, aquele gancho! Parecendo querer me atingir. Eu nem fiz nada pra ele.

De repente, viu-se alçado por aquele ser desfigurado e atirado para dentro da embarcação que balançava pra cá e pra lá, fazendo com que ele fosse jogado para um lado e para o outro. Estava apavorado, em pânico. Sentia-se ameaçado, sem chance de escapar.

Que vontade de voltar pro seu quartinho. Ficou até com vontade de ler todos aqueles livros, ali quentinho, protegido.

Lembrou-se da oração que havia aprendido na escola. Rezou com toda sua força interior, pedindo a Deus que o trouxesse de volta para sua casa. Jurou que seria um menino melhor.

Abriu os olhos. Aliviado, pegou o livro jogado no chão e voltou a ler, agora com um interesse que nunca antes havia experimentado. Iria mostrar à mãe que havia mudado.

Ela precisava voltar a amá-lo.  

 

 


Mais um para a Conta de Protássio - SILVIA VILLAC

 




Mais um para a Conta de Protássio

       SILVIA VILLAC

 

Às 9h32 da manhã, o celular de Protássio apita, indicando que chegou uma nova mensagem. É da delegacia, avisando para ele se dirigir àquele restaurante famoso, recém-inaugurado no bairro dos Jardins, onde um corpo de mulher tinha sido encontrado no banheiro masculino.

Ao chegar na porta do estabelecimento, já há duas viaturas de polícia, além de um pequeno aglomerado de curiosos e um carro da imprensa. Mostra seu distintivo, adentra o recinto e vai direto para a cena do óbito.

O corpo mostra, aparentemente, apenas um ferimento certeiro no coração, feito por um objeto pontiagudo. O rosto da falecida está virado de lado e, tão logo vê sua feição, ele se empalidece porque, imediatamente, reconhece a vítima.

Dolores o havia contratado para seguir seu marido. Desconfiava de traição e, como herdeira de um grande conglomerado, queria deixá-lo na penúria, já que o casamento tinha sido feito sob o regime de separação total de bens e o cônjuge, só seria herdeiro em caso de seu falecimento.

Ele permanece impassível, sem demonstrar quaisquer emoções e omite o fato de saber quem é o cadáver. Estava para sair do banheiro quando um pequeno ponto brilhante lhe chama a atenção. É um botão de camisa de madrepérola, com uma sutil gota de sangue, que encontrou bem atrás do vaso sanitário. Não podia ser da vítima porque ela usava um vestido azul-petróleo, fechado por zíper.

Pega um lenço de papel de seu bolso fingindo que vai assoar o nariz e, disfarçadamente, consegue “pescar” o objeto do chão.

Sai do local e telefona para o Nelson, o médico legista, seu companheiro de bar e amigo de longa data, explicando que tem prioridade em saber o resultado do DNA daquela gotícula.

Passados 3 dias o doutor lhe retorna, informando que o sangue pertence a uma pessoa do sexo feminino, mas que nada consta no banco de dados da polícia sobre ela.

Sem se espantar com essa notícia, Protássio se dirige à casa de Lúcia, a amante do marido de Dolores, para fazer tocaia mais uma vez. Somente no final da tarde, às 17h49 precisamente, é que madame sai da garagem do prédio em seu Audi prateado, sendo seguida por ele, em seu inconfundível Pálio bordô desbotado.

Ela sai do veículo com uma sacolinha de loja, entrega as chaves para o manobrista na frente de um bar na Avenida Faria Lima, a 4 quarteirões de onde se localiza o escritório do Dr. Arnaldo, o marido de Dolores, e entra sozinha com passos apressados. Protássio também estaciona nesse mesmo local e tenta dar uma arrumada no cabelo e desamassada na roupa surrada antes de segui-la adentro.

Ele toma o assento no balcão, onde há um grande espelho e, de costas, consegue vê-la em uma mesa. Não demora muito, eis que surge o viúvo — bem despreocupado para quem acabou de perder a esposa. O casal se cumprimenta com um “selinho” e se senta.

O detetive, muito sagaz e observador, não deixa de notar como a mulher está agitada, gesticulando nervosamente com as mãos e quase deixa cair a tal da sacolinha antes de entregá-la ao homem. Esse, por sua vez, dá uma olhada ao redor e retira um saco plástico de dentro, onde se vê que é um tecido (seria uma camisa com botões de madrepérola?), e a ponta de uma faca de cozinha manchada de sangue. Bingo, pensou Protássio! Mais um caso resolvido! Os 2 são culpados: um é o mandante, no caso, o marido, e o outro, o executor, a amante.

Calmamente, ele faz um telefonema e, enquanto aguarda a polícia chegar para dar voz de prisão, pede mais uma dose dupla de whisky on the rocks.