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Herança secreta - Ledice Pereira

 

Jornal Somos - Deputado Estadual faz proposta de “bolsa arma” para ...


Herança secreta

Ledice Pereira




Jurandir vivia um casamento conturbado, cheio de desconfiança. Tinha medo de que Jussara, ao saber da fortuna que ele havia herdado, começasse a exigir sua parte, pois afinal eram casados com comunhão de bens.

A obsessão tomava conta do rapaz, que tentava esconder de todos o quanto havia ficado rico. Abrira conta num banco da cidade vizinha, só para não haver possibilidade de que alguém desse com a língua nos dentes, revelando a enorme quantia em dinheiro, que havia aplicado.

Passou a viver na mentira, caindo em contradição várias vezes, fazendo com que Jussara desconfiasse de que alguma coisa estava acontecendo.

A moça, achando que havia algum rabo de saia, arrastando o rapaz para a outra cidade a toda hora, resolveu segui-lo.  

Arrumou uma arma emprestada e esperou até que ele saísse sem imaginar que corria perigo.

Ao vê-lo dirigir-se para a gerente do Banco, uma jovem bonita e elegante, não teve mais dúvida, atirou nos dois que caíram ali mesmo para espanto de todos. Chamado o resgate, constataram que a moça havia sido baleada de raspão na perna, mas o rapaz corria risco de morrer pois a bala alojara-se perto do coração.

Jussara foi levada para a delegacia, por ter sido responsável por tamanha tragédia. Amargou alguns anos na prisão pelo crime de tentativa de duplo homicídio

Jurandir, após recuperar-se tentou, em vão, diminuir a pena da mulher, oferecendo dinheiro para pagar fiança, mas ela teve que cumprir quase toda a pena, que acabou sendo abrandada por bom comportamento. Acabou sabendo da verdadeira razão do marido, vira e mexe, dirigir-se à cidade vizinha e, ao ser libertada, entrou imediatamente com um pedido de divórcio, exigindo metade do valor aplicado por Jurandir.

Se não existia confiança, não poderia haver mais casamento.



(Texto criado com algumas palavras sugeridas na Maratona Literária 2020)

LAMPEJOS DE AMOR - Sérgio Dalla Vecchia

 


→ Significado do Nome Maria - Origens, Características e Muito Mais

LAMPEJOS DE AMOR

Sérgio Dalla Vecchia


 

Amor primeiro,

Inocente como eu,

puro como ela

Maria do pomar.

 

Chama adolescente,

na força da preamar,

com paixão eloquente,

abrolhou Maria do mar.

 

Da franja dourada,

sorrisos gírios

da prosa corada,

Maria dos lírios.

 

Nos versos salientes,

olhos a expectar,

versos em luar ausente,

Maria à rezar.

 

Maria verdadeira,    

com abraço marcante,

selou com beijo velado ,

aquele amor itinerante.

 

Momentos corteses,

com Maria da nobreza.

Terminaram em meses

em frase sem sutileza.

Textos diversos - Maratona Literária 2020 - Ledice Pereira

 


Janela Vista Árvore - Foto gratuita no Pixabay


Textos diversos - Maratona Literária 2020

Ledice Pereira



Primeiro texto

 

Ao abrir a janela, encantei-me com a paisagem. O batente emoldurava qual um quadro. O verde da folhagem me encheu de esperança. Eu que chegara ali tão deprimida.

Fora Jerônimo quem me aconselhara a sair daquele burburinho da cidade grande.

Ele tinha toda a razão. Aqui encontrei a paz de que tanto precisava.

 

Segundo texto

Estava prestes a deixar o lugar onde vivera até então. Sentia a perna bambear, mas tinha que partir. O trem acabara de chegar. Tinha exatos cinco minutos para mudar o percurso de sua vida e buscar a felicidade.

Não tivera coragem de se despedir dos pais. Deixara apenas um bilhete: “amo vocês, mas vou ao encontro do meu futuro. Preciso me encontrar. Já é tempo de andar com as minhas próprias pernas. Torçam por mim! Clovis”

 

Terceiro texto – LAÇO

Eu jamais tive a intenção de quebrar aquele laço que nos unia desde a infância.

Nossos pais eram amigos e nós fomos criadas praticamente juntas. Mas Solange mudou. Ficou tão diferente que eu já não enxergava nela a amiga que fora. Tornou-se uma jovem preconceituosa, menosprezava os serviçais, maltratava os animais, procurava me humilhar, fazendo com que eu chorasse escondida.

Ela sabia do meu interesse por Claudio, até que o conquistou.

Eu só soube quando ela veio com ele trazer o convite de casamento. Ele parecia estar pouco à vontade.

Não tive forças para ir ao casamento. Arranjei como pretexto, uma gripe oportuna.

E, desde então, nosso laço se rompeu definitivamente.


Quarto texto

Tudo acontecia lentamente. Olhares breves, acenos curtos e o sol se deixando levar para trás da colina. Tudo devagar como tem que ser numa despedida.

As lágrimas rolavam sem que eu conseguisse estancá-las. Sentia-me como se arrancassem um pedaço de mim.

Ele estava indo estudar fora. Preparara-se para isso. Estudara muito. Conseguira seu objetivo. Fora aprovado no exame de admissão com louvor.

Mas e eu? O que seria de mim? Conseguiria resistir à distância que nos manteria longe durante todos aqueles anos em que ele cursaria a Universidade?

Eu temia que lá ele encontrasse alguém que me substituísse.

Eu teria que ser muito forte.

 

Quinto texto

Como acreditar num homem como ele? Saía pela tangente, tinha um olhar dissimulado que nunca fixava na gente. Não revelava o que fazia nem onde morava. Trazia a carteira sempre gorda que fazia questão de mostrar. Cobria-se de grossas correntes douradas que eu não sabia dizer se eram ou não de ouro.

Seu olhar cafajeste quase me despia, olhando-me de cima a baixo.

Causava-me medo e asco!

 

Sexto texto

Tico não era homem de muita ação. Tinha dificuldade de raciocinar rapidamente. Quem seria Fran?

Resolveu buscar ajuda no povoado. Dirigiu-se ao bar de Armando e o chamou de lado, mostrando-lhe o que achara.

Armando pensava rápido. Precisavam agir imediatamente. Era amigo do delegado. Ligou para a delegacia e detalhou o que haviam encontrado.

De posse do mapa, o delegado recrutou dois policiais para chegarem ao local no barco de Tico, que se ofereceu para levá-los. Foram recebidos a bala. Tiveram que enfrentar a fúria de dois marmanjos, até que a munição dos dois acabou.

Os homens, marinheiros de primeira viagem, tiveram que se render e Fran foi libertada do cativeiro, recebendo inúmeros elogios pois graças à sua ousadia e esperteza, teve coragem de mandar numa garrafa o bilhete de socorro, conseguindo não só sua liberdade como também a prisão dos malfeitores.



Paisagem matinal - Sérgio Dalla Vecchia

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Paisagem matinal

Sérgio Dalla Vecchia

 

Algo me despertou daquele sono reparador.

Pensamentos sonolentos não conseguiam ainda identificá-lo, até que  um sutil aroma de relva mostrou-se presente. Pus-me em pé, já não tão sonolento. O olfato era meu guia na busca do agradável perfume.

As venezianas filtravam apenas os raios mais luminosos, para que no chão mostrassem em formação lado a lado, as retilíneas silhuetas simétricas.

Cheguei até a janela e com um leve toque na cremona, abri as asas da borboleta veneziana para uma decolagem rumo ao mundo original.

O espetáculo era do dia, apresentando-se garbosamente à mim, naquela manhã orvalhada na casa de praia.

A brisa sôfrega dominou meus pulmões, enquanto o oxigênio puro me fez sentir mais vivo do que nunca.

A sensação de imortalidade foi adida por uma majestosa árvore grumixama vestida de verde até o rés do chão,  que me acenava com os galhos animados ao sabor do vento.

A imagem natural invadiu meu cérebro e como um recado me induziu a aprender à viver a vida.

Vesti-me rapidamente com roupas de banho e corri para o mar.

Lá chegando já estava eterno!



(Texto criado através da imagem da janela - Maratona Literária 2020)


Oswaldo José - Fernando Braga

 

Mais importante que saber operar é saber quando não operar': as ...


Oswaldo José

Fernando Braga

 

Quarentena há quatro meses e meio! Em casa, lemos, ouvimos boa música, filmes na TV e ouvimos as notícias sobre o Covid 19 e de nossa política instável, sem rumo. Hoje detectamos o segundo lugar no mundo em número de contaminados com este vírus, cerca de 2,5 milhões de casos e mais de 106.000 óbitos pela doença. Já se fala na vacina russa, de Oxford e até de um soro de cavalo, brasileiro.

 

Lembrando-me sempre de dois grandes amigos, o Zé Osvaldo e o Oswaldo José, famosos neurocirurgiões, profissionais éticos, capacitados, acima da média, que trabalharam na mesma universidade federal, onde se formaram. Tiveram uma vida universitária bem ativa, grande produção científica, mãos cirúrgicas de primeira. Com nomes invertidos distinguiam-se em um ponto. O primeiro, era um gozador de primeira, “that liked to tease” em inglês, que não perdia a chance de inventar histórias, que os outros acreditavam, mas que não passavam de um “Primeiro de Abril”. Seus colegas, amigos e mesmo parentes ficavam desconcertados. Embora todos soubessem desta característica, sempre caiam em sua trama. Entretanto, não deixavam de admirá-lo.

 

Oswaldo José, por outro lado, muito sério, detestava gozações e era o tipo certinho, igualmente muito admirado.

Ha cerca de um mês, soubemos que José Osvaldo, mantendo seu trabalho em vários hospitais de São Paulo havia sido internado  com Corona vírus e estava em UTI, entubado e sedado. Isto muito nos entristeceu e ficamos na torcida desejando sua melhora rápida. Entramos em contato com seu filho que diariamente nos fornecia dados médicos, sem que pudéssemos visitá-lo. Eu, certamente não poderia em nenhuma hipótese tentar me aproximar, embora fosse meu desejo.

 

Há cerca de uma semana, tendo tido melhora da pneumonia, sua sedação foi suspensa, mas no dia seguinte, novamente foi entubado, traqueostomia feita devido a uma nova pneumonia por bactéria resistente hospitalar. Seu sistema circulatório, o coração de um idoso já com 80 anos entrou em falência, com a pressão mantida através de noradrenalina. Ontem pela manhã tivemos o comunicado de que sofrera uma falência geral, sobrevindo a morte, já esperada.

 

Realmente, triste a perda deste grande amigo, dedicado neurocirurgião, professor de primeira linha, alegre, brincalhão, espirituoso, que apesar de suas gozações, nunca ofendia alguém. Foi cremado na Vila Alpina, após ter ido diretamente para o cemitério, apenas com alguns familiares presentes. Ontem mesmo no final da tarde, recebi um telefonema de seu grande e inseparável amigo Oswaldo José, que me deu a triste notícia, que já conhecia. Ficamos muito chocados, ele chegou a chorar copiosamente e terminamos combinando jantarmos juntos, tão logo a fase principal da pandemia melhorasse, permitindo encontros presenciais.

 

Foi então que me lembrei, do último caso que me contou, que ficara guardado no baú de suas memórias, onde enfatizou uma grande coincidência ocorrida em sua vida.

 

Disse ele:

— Há uns 15 anos eu e minha esposa fomos a Recife, convidados para sermos padrinhos no casamento do filho do Dr. H.C.A, querido amigo e grande neurocirurgião daquele estado e do nordeste brasileiro. A cerimônia seria no sábado às 19,00 horas. Chegamos na sexta e nos hospedamos no Transamérica Prestige, bem próximo da orla na praia de Boa Viagem.

 

No sábado, tomamos um excelente desjejum e vestidos com trajes apropriados, fomos caminhar em direção à praia, apreciando o movimento e as variadas lojinhas que se encontravam no caminho. Ao passarmos por uma pequena loja de roupas infantis, minha esposa parou e mostrou-me uma roupinha de bebê muito graciosa. Uma senhora, lá dentro sentada, se aproximou e pediu que entrássemos, pois tinha muitas novidades.

 

Como neurocirurgião, logo observei que a senhora, enquanto mostrava sua coleção, apresentava uma pequena cicatriz no meio da testa e uma depressão na região temporal esquerda, o que era bem sugestivo de que havia sido operada de um aneurisma intracraniano. Perguntei a ela, mais por curiosidade, se havia sido operada de aneurisma cerebral, o que ela confirmou dizendo que havia sido operada por um grande neurocirurgião recifense, citando em seguida o seu nome: Prof. H.C.A.

 

Disse a ela que éramos de São Paulo e que estávamos em Recife para sermos um dos padrinhos no casamento de seu filho naquele sábado. Passamos a desenvolver um bom papo, onde ela não parava de elogiar o referido neurocirurgião. Também o elogiei muito!

 

Nisto ela disse: — Vocês disseram que são de São Paulo, pois há seis anos levei minha mãe para São Paulo, onde foi operada de uma placa grande na carótida, bem aqui no pescoço. Fomos a um neurocirurgião indicado pelo Dr.H.C.A.  que a operou. Vocês já ouviram falar de um tal de Dr. Oswaldo José?

 

— É claro que ouvimos e mais, a senhora se encontra bem na frente dele!!

 

— Meus Deus, não me diga que o sr. é o Dr. Oswaldo!!!

 

— Certamente que sim, e veja que bela e grande coincidência.

 

— Doutor, vou ligar já para minha mãe e dizer que o senhor está aqui na minha frente. Adorou o senhor e disse que foi muito bem tratada. Vai ficar muito feliz em conversar com o senhor! Ela está ótima e nunca mais teve aqueles problemas de enfraquecer subitamente o braço direito e atrapalhar sua fala!

 

Depois de uma conversa de 10 minutos com sua mãe, agradecemos e saímos, após termos adquirido a bela roupinha que minha mulher escolhera e ainda outra, que a senhora nos presenteou.

 

O restante deste dia foi excelente, como esperávamos. Muita alegria. Casamento animado, noiva linda, ambiente de primeira, com muita alegria. Ainda no domingo, permanecemos em Recife, almoçamos no belo apartamento de nosso anfitrião.

Realmente inesquecível!!

É de confundir - Auguste Villiers de L'Isle-Adam

O conto É DE CONFUNDIR, foi um ótima contribuição da Ises.

Esse conto faz parte do livro Contos Fantásticos do Século XIX, escolhidos por Ítalo Calvino.


Auguste Villiers de L'Isle-Adam – Wikipédia, a enciclopédia livre

O autor Auguste Villiers de L'Isle-Adam, tem uma série de contos cruéis que encostam n gênero terror.
Neste, propriamente dito - É DE CONFUNDIR - ele adota o efeito da REPETIÇÃO para realçar as cenas inquietantes. 

Gostaria que lessem atentando para as cenas orgânicas, cenário dinâmico, sinestesia, e outras ferramentas que o autor esparrama pelo texto.
Percebam como ele emprega a metáfora causando o efeito visual no leitor.

Ela já entra em ação na primeira linha, aciona o personagem narrador colocando-o em movimento, descendo apressado pela beira do rio.

"ideias pálidas e brumosas "
"o vento fustigava os chapéus"
E MUITOS OUTROS dispositivos que tornam a leitura extremamente prazerosa.

Um conto fantástico pelo gênero, e pela qualidade. 


Obrigada, Ises, eu não conhecia.


É de confundir
Auguste Villiers de L'Isle-Adam
⠀⠀⠀⠀⠀Numa cinza manhã de novembro, eu ia descendo pela beira do rio em passo apressado. Uma garoa fria molhava o ar. Passantes negros, abrigados em guarda-chuvas disformes, se entrecruzavam. O Sena amarelado carregava seus barcos de mercadorias parecidos com besouros. Nas pontes, o vento fustigava bruscamente os chapéus, cujos donos lutavam com o espaço para salvá-los, fazendo aqueles gestos e contorções sempre tão penosos para o artista. 
⠀⠀⠀⠀⠀Minhas ideias eram pálidas e brumosas; a preocupação de um encontro de negócios, aceito na véspera, atazanava minha imaginação. O tempo era curto: resolvi me abrigar debaixo da marquise de um portão, de onde seria mais cômodo fazer sinal para um fiacre. 
⠀⠀⠀⠀⠀Na mesma hora notei, bem ao meu lado, a entrada de um prédio quadrado, de aparência burguesa. 
⠀⠀⠀⠀⠀Ele tinha se erguido na bruma como uma aparição de pedra, e, apesar da rigidez de sua arquitetura, apesar do vapor sinistro que o envolvia, percebi de imediato um certo ar de hospitalidade que serenou meu espírito. 
⠀⠀⠀⠀⠀"Sem a menor dúvida", pensei, "as pessoas que moram aqui são gente sedentária! Essa soleira é um convite a parar! A porta não está aberta?"
⠀⠀⠀⠀⠀Então, com a maior polidez do mundo, satisfeito, chapéu na mão — até mesmo meditando em um madrigal para a dona da casa —, entrei, sorridente, e logo me deparei, no mesmo nível, com uma espécie de sala de teto envidraçado, de onde caía a luz do dia, lívida. 
⠀⠀⠀⠀⠀Nas colunas estavam pendurados roupas, cachecóis, chapéus.
⠀⠀⠀⠀⠀Mesas de mármore estavam instaladas em todos os cantos. 
⠀⠀⠀⠀⠀Vários indivíduos, de pernas esticadas, cabeça levantada, olhos fixos, jeito confiante, pareciam meditar. 
⠀⠀⠀⠀⠀E os olhares eram sem pensamentos, os rostos eram da cor do tempo. 
⠀⠀⠀⠀⠀Havia pastas abertas, papéis desdobrados perto de cada um deles. 
⠀⠀⠀⠀⠀E então percebi que a dona da casa, com a cortesia acolhedora com que eu estava contando, era ninguém menos do que a Morte. 
⠀⠀⠀⠀⠀Olhei para meus anfitriões. 
⠀⠀⠀⠀⠀Decerto, para escapar dos aborrecimentos da vida azucrinante, a maioria dos que ocupavam a sala tinha assassinado seus corpos, esperando, assim, um pouco mais de bem-estar. 
⠀⠀⠀⠀⠀Quando estava ouvindo o barulho das torneiras de cobre presas no muro e destinadas a regar diariamente aqueles restos mortais, escutei o ruído surdo de um fiacre. Ele parou defronte do estabelecimento. Fiz a reflexão de que meus homens de negócios estavam esperando. Virei-me para aproveitar a boa fortuna. 
⠀⠀⠀⠀⠀De fato, o fiacre acabava de vomitar, na soleira do prédio, colegiais de pileque, que precisavam ver a Morte para acreditar nela. 
⠀⠀⠀⠀⠀Olhei para o fiacre vazio e disse ao cocheiro: 
⠀⠀⠀⠀⠀"Passage de l'Opéra!"
⠀⠀⠀⠀⠀Um pouco depois, nos bulevares, achei o tempo mais encoberto, sem nenhum horizonte. Os arbustos, vegetações esqueléticas, pareciam indicar vagamente, com a ponta dos galhos negros, alguns pedestres aos policiais ainda sonolentos. 
⠀⠀⠀⠀⠀O carro ia apressado. 
⠀⠀⠀⠀⠀Pela vidraça, os passantes me davam a impressão de água correndo.
⠀⠀⠀⠀⠀Chegando ao meu destino, pulei para a calçada e peguei a passagem, repleta de rostos preocupados. 
⠀⠀⠀⠀⠀No final do corredor, bem na minha frente, reparei na entrada de um café — desde então consumido por um famoso incêndio (pois a vida é um sonho) —, relegado ao fundo de uma espécie de galpão, debaixo de uma arcada quadrada, de sinistra aparência. Os pingos de chuva que caíam no vidro de cima escureciam mais ainda a pálida claridade do sol. 
⠀⠀⠀⠀⠀"É aqui", pensei, "que me esperam os meus homens de negócios, de copo na mão, olhos brilhantes e desafiando o Destino!"
⠀⠀⠀⠀⠀Então, virei a maçaneta da porta e me deparei, no mesmo nível, com uma sala onde a claridade do dia caía do alto, lívida, pela vidraça. 
⠀⠀⠀⠀⠀Em colunas havia roupas, cachecóis, chapéus pendurados. 
⠀⠀⠀⠀⠀Mesas de mármore estavam instaladas em todos os cantos.
⠀⠀⠀⠀⠀Vários indivíduos, de pernas esticadas, cabeça levantada, olhos fixos, jeito confiante, pareciam meditar. 
⠀⠀⠀⠀⠀E os rostos eram da cor do tempo, os olhares eram sem pensamentos. 
⠀⠀⠀⠀⠀Havia pastas abertas, papéis desdobrados perto de cada um deles. 
⠀⠀⠀⠀⠀Olhei para esses homens. 
⠀⠀⠀⠀⠀Decerto, para escapar das obsessões da insuportável consciência, a maioria dos que ocupavam a sala tinha, muito tempo antes, assassinado suas "almas", esperando assim um pouco mais de bem-estar. 
⠀⠀⠀⠀⠀Quando estava ouvindo o barulho das torneiras de cobre presas no muro e destinadas a regar diariamente aqueles restos mortais, a lembrança do ruído surdo do carro voltou ao meu espírito. 
⠀⠀⠀⠀⠀"Com toda a certeza", pensei, "aquele cocheiro deve ter sido atacado, no correr do tempo, por uma espécie de estupor, pois simplesmente me trouxe, depois de tantas circunvoluções, ao nosso ponto de partida! Todavia, confesso (caso haja um equívoco), O SEGUNDO OLHAR É MAIS SINISTRO QUE O PRIMEIRO!..."
⠀⠀⠀⠀⠀Então, em silêncio fechei a porta envidraçada e voltei para casa, firmemente decidido — desconsiderando o exemplo e pouco me importando com o que pudesse me acontecer — a nunca mais fazer negócios. 

 
Tradução de Rosa Freire D'Aguiar