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O sumiço da morena - Ises de Almeida Abrahamsohn - CONTO DE FÉRIAS


Gif de detective
O sumiço da morena
Ises de Almeida Abrahamsohn

O delegado Freitas levantou o olhar do boletim de ocorrência para o rapaz bem vestido que o aguardava. Sabia bem quem era, mas mesmo assim indagou: −Foi sua irmã que desapareceu? Há cinco dias? Vai ver que viajou...

Da moça, lembrava-se vagamente de uma morena bonita em um incidente ocorrido há mais de quinze anos. Teria agora  uns 35 anos. Mas o irmão Juninho, e o pai, conhecido por Dr. Alceu – doutor em que? Crime? – sempre estiveram na sua mira desde que assumira a delegacia daquele bairro abastado. Castanho era o sobrenome do velho. Nunca conseguiram pegá-los. Ostensivamente era banqueiro de jogo do bicho, contravenção apenas, mas todos na polícia sabiam que a fortuna vinha das drogas cuja distribuição era gerenciada  por pai e filho e pelo sócio de longa data, o mexicano Mário Gomez.

O delegado fez as recomendações de praxe caso houvesse algum pedido de resgate para a moça e despachou o rapaz. A desaparecida era Talita que levava vida independente desde que abandonara a casa aos dezessete anos quando descobriu o tráfico comandado pelo pai e irmão. Na época as acusações da jovem contra o pai e a madrasta chegaram à polícia e às revistas de fofocas. Quem sabia quase tudo sobre os Castanho era Turíbio Esteves, advogado, jornalista investigativo e amigo de Freitas. O jornalista estava há tempo na cola dos Castanho & Gomez justamente por causa de Talita. Namoraram na adolescência e quando ambos cursaram a mesma faculdade. Tinha acompanhado a tempestuosa relação dela com a família. Separaram-se quando a moça viajou para os Estados Unidos para fazer um MBA no Texas. Não tornaram a ver-se, mas Turíbio sabia que a advogada tinha montado escritório especializado em direito comercial em São Paulo. Ainda apaixonado, o jornalista tentara em vão uma reaproximação quando do regresso de Talita ao Brasil, mas ela havia encontrado outro parceiro no Texas.

Turíbio discutia o desaparecimento com o delegado Freitas.

− Muito estranho! Primeiro, ao que eu saiba, ela nunca reatou com a família por se opor às atividades criminosas; segundo, por que a família sabe de seu desaparecimento e por que foram eles a dar queixa? Será que a tinham sob vigilância? E, nesse caso, por quê?  Ou será que já receberam algum pedido de resgate que não revelaram?

−  Ou pior, considerou Freitas. Talvez esteja morta a mando deles. Com essa gente nunca se sabe. O tal Juninho é obviamente o herdeiro dos negócios e a irmã ainda sabe bastante para colocá-los na prisão, coisa que nós nunca conseguimos!

O jornalista teve um aperto no coração –  que idiota eu sou depois de tanto tempo ainda me amarro na Talita como estará? morenas se conservam melhor a boca era exuberante não existia botox gozado são dos beijos doces e longos e não do corpo que mais me lembro os lábios carnudos a abrir caminho para a língua exploradora e os pelinhos desalinhados que sobravam no vão do nariz entre as fartas sobrancelhas o cabelo preto e os olhos puxados de alguma avó índia...

− Acorde Turíbio! Ainda sonhando com a ex-namorada? Caia na real, já se vão dez anos desde que a viu pela última vez.

O jornalista sorriu: 
− Havemos de achá-la...

Cinco dias depois o Freitas havia investigado o escritório e o apartamento da vítima. Computadores, agendas e documentos tinham sumido, mas nada indicava que a saída dos ocupantes tivesse sido apressada. Os zeladores perceberam o acúmulo da correspondência; os empregados foram dispensados e indenizados. No guarda roupa as roupas limpas e em ordem. No escritório poucas pastas de clientes comerciais de assuntos já resolvidos. Difícil acreditar em sequestro.

Numa gaveta, algumas fotos dos tempos da universidade americana. Talita abraçada a um rapaz com jeitão latino e farta cabeleira apanhada num curto rabo de cavalo. Turíbio conseguiu ler UT Austin Library numa das fotos. Uma consulta às turmas de formandos revelou-lhe o nome do rival: Renan Goméz. De imediato o reconheceu com o cabelo aparado na foto acadêmica: era o filho de Mário Goméz. O jornalista consultou seu dossiê e lá estava a informação: o sócio dos Castanho há muito tinha se divorciado e mãe e filho foram morar nos Estados Unidos, no Texas. A foto era do tempo do MBA da Talita, há mais de dez anos.  ̶  Será que ainda estariam juntos?

Juninho fez novo contato com o Freitas insistindo na hipótese de crime ou sequestro, mas negando qualquer pedido de resgate. O delegado acabou descobrindo que havia outros interessados no paradeiro de Talita: o escritório tinha sido invadido e vasculhado.

No dia seguinte um corpo carbonizado e irreconhecível foi encontrado em um matagal em Parelheiros. À tarde o delegado conseguiu falar com o legista. Era uma mulher jovem, poderia ser Talita; havia duas balas calibre 32 entre os fragmentos do crânio. O delegado indagou sobre a arcada dentária. Sobrara apenas um fragmento do maxilar inferior esquerdo. Se tivessem sorte a identificação seria rápida. Análises de DNA, na melhor das hipóteses, levariam dois meses no laboratório da científica, cronicamente sem recursos! Ligou para o Juninho que pareceu aliviado ao ouvir a notícia e ansioso por colaborar. Em uma hora retornou com o nome do dentista da época da adolescência de Talita.

Turíbio foi atrás de Renan Goméz. Achou dois endereços no Brasil. Encontrou a porta trancada no escritório da firma Goméz Import & Export num prédio decrépito próximo à Sé. O outro endereço era em Campo Grande. A firma não tinha site próprio, apenas um telefone. Ao ligar, ouvia-se uma secretária eletrônica. Teria que viajar até Campo Grande...

À noite, o rapaz se encontrou com Iracema, sua conhecida e amiga de longa data. Era a governanta dos Castanho há duas décadas. Gostava de Turíbio desde o tempo do namoro com Talita. Durante os anos se revelara uma fonte preciosa de informações. Dona Iracema, como ele agora a tratava, não escondeu a sua preocupação:

̶  Eles só falam às escondidas, mas eu sei que a menina foi raptada. Já ouvi por duas vezes comentarem que a quantia é muito grande. Parece que os bandidos estão ameaçando acabar com os negócios deles, além da vida da Talita. Não que a família se importe muito com ela, o principal pra eles é a grana. Aliás, já têm uns cinco anos que não ouço nem sei mais nada dela. Fiquei muito sentida, quando a mãe morreu fui eu que cuidei dela. Soube que arrumou um namorado nos Estates. Ouvi que o Juninho vai entregar uma parte do resgate ainda hoje.

Eram sete da noite e o jornalista ficou alvoroçado. Lembrou que Iracema era louca por alfajores e gentilmente despachou-a com duas caixas do doce compradas ali mesmo no Shopping.

Ainda alcançou o Freitas na delegacia. O delegado resmungou que seguir o Juninho seria inútil porque era quase certo o corpo queimado ser da Talita e, nesse caso, não havia razão para os Castanho pagarem o resgate. Devidamente munidos de uma térmica com café, estavam os dois encolhidos de frio no carro do delegado numa rua escura do Morumbi. Era quase uma hora quando o portão da mansão se abriu para passar o Volvo preto blindado. Numa pracinha atrás do estádio Juninho desceu com uma sacola e caminhou na direção de uma viela estreita de terra. Os dois amigos esgueiraram-se pelos muros da praça, mas não conseguiam enxergar nada na passagem sem iluminação. Ouviram vozes seguidas de disparos de duas armas distintas. Ao correrem para o beco, quem quer que houvera estado do outro lado havia levado a melhor. O farolete do delegado iluminou Juninho já morto; no chão  a sacola e pacotes de jornal encimados por algumas notas de cem dólares.

̶  Estou perdido neste caso, comentou mais tarde o delegado. Os sequestradores matarem a fonte da grana?  Verdade que ainda restam o velho e o sócio... Ou foi apenas um aviso, para eles não tentarem novo golpe?

Turíbio respondeu que iria averiguar a Goméz Import & Export. Estava obcecado por encontrar Talita. Chegou a Campo Grande no começo da tarde. O endereço era próximo ao aeroporto. Viu dois grandes galpões com enormes portas metálicas cerradas. Era lá mesmo. Deu a volta e encontrou janelas e duas pequenas portas também fechadas. Ninguém à vista. Perambulou pelos arredores e entrou num bar. Perguntou sobre a empresa. O dono serviu-lhe a cerveja e informou apenas que o horário era irregular. O cunhado era um dos motoristas da firma. Sabia apenas que trabalhavam com importação de louças e vasos do Peru e da Bolívia que eram logo despachados para São Paulo e Santos.

O jornalista voltou ao aeroporto. Ia esperar por lá para ver. Enquanto almoçava, ligou o Freitas para dizer que o corpo carbonizado não era de Talita e que não ouvira mais nada da família Castanho; o pai veio reconhecer o corpo do filho e, mesmo pressionado, negou haver qualquer pedido de resgate pela filha ou saber algo sobre a morte do filho.

O quadro de chegadas do aeroporto indicava que um avião da Star Peru pousaria no fim da tarde. Turíbio voltou à área dos galpões. Escurecia quando dois caminhões carregados entraram. As portas corrediças imediatamente se fecharam. Entretanto, pelas janelas traseiras de um dos armazéns filtrava-se alguma luz. Uma das portas estava destrancada e o rapaz deparou-se com uma escada metálica que conduzia a um mezanino. Lá em cima devia ser o escritório. Alcançou o patamar sem fazer barulho, apesar da fraca iluminação. De lá pôde ver alguns homens descarregando as caixas. Uma delas estava aberta e via-se um enorme vaso de cerâmica decorado. Turíbio avançou por um corredor sombrio e silencioso ladeado de portas. Súbito sentiu a pressão de um cano de arma nas costas:  ̶  Silêncio e vá caminhando!

Foi empurrado contra a última porta. A claridade da lâmpada nua do teto cegou-o por um instante antes que reconhecesse Talita. Trazia o cabelo bem curto com mechas descoloridas. Os lábios e as sobrancelhas escuras eram os mesmos de suas lembranças. O empregado armado postou-se do lado de fora.

̶  Por essa você não esperava, não é Turíbio ? O problema é que você chegou perto demais. Quando foi atrás de informações no Texas sobre Renan e a mãe Alicia que, aliás, é minha sogra, eu sabia que você não desistiria. Achei que você e seu amigo iriam sossegar ao encontrar os meus restos carbonizados. Infelizmente parece que o fogo não deu conta de tudo.

O Renan já tinha tudo montado lá no Texas para o transporte do pó, mas o cerco estava apertando demais. Resolvemos voltar ao Brasil. Os vasos com parede oca foram um achado. Faltava o capital para começar e precisávamos da rede controlada pelo Dr. Alceu e Juninho, meus adoráveis pai e irmão. Pedimos dez milhões e cinquenta por cento na sociedade. Os documentos fornecidos pelo Mário, pai do Renan, mais o que eu tinha para contar seriam suficientes para colocar todos na cadeia. Eu decidi sumir de São Paulo. Um dos dois certamente acabaria comigo. Me procuraram como loucos e botaram a policia e você no meu encalço. O idiota do Juninho de início recusou a nossa proposta. Depois voltou atrás e combinou a entrega do dinheiro. O tolo acreditava que eu estivesse morta e que estava passando a perna no Renan. Foi fácil tirá-lo da jogada. Eu estava esperando no beco já preparada. Despejei-lhe três balas, mas ele ainda conseguiu sacar e atirar. Quase me atingiu.

Com o Juninho morto, o Alceu não tem como não ceder e nós mais o Mário tomaremos conta da operação.

O jornalista estava paralisado.

̶  E agora Talita? Vai me matar também?

̶  Vai depender de você. Pelos velhos tempos vou te dar uma chance. Veja bem, eu vou reaparecer em São Paulo. Aí não terá havido mais nenhum crime de sequestro a investigar. Para você saber, o corpo carbonizado era de uma moradora de rua que encontramos já morta; os tiros foram dados post-mortem.  Quanto à morte do Juninho, não creio que a policia vai investigar muito. Acho até que vão ficar agradecidos.

Você, se quiser ficar vivo, fique calado e longe do nosso caminho. Diga ao seu amigo Freitas que não achou nada de suspeito na Goméz Import & Export.

Turíbio conhecia bem a Talita. Conseguiu apenas articular:

̶  Sim. Estou de acordo.


Retrocedeu até a porta e alcançou o corredor. Tinha medo de que ela mudasse de ideia. As pernas estavam bambas e suava frio. O capanga o escoltou até a entrada do aeroporto. Lívido e tremendo deixou-se cair numa poltrona. Desligou o celular e embarcou no avião da noite de volta a São Paulo. Depois de alguns meses mudou-se definitivamente para Porto Alegre.

CONTO DE NATAL - JÁ É NATAL DE NOVO - Oswaldo U. Lopes


medico (17)



JÁ É NATAL DE NOVO
Oswaldo U. Lopes


            Era essa sensação que Jorge Antônio vivenciava ao percorrer as enfermarias do Pronto-Socorro do Hospital das Clinicas. Cristão para constar na ficha, agnóstico por crença ou descrença, costumava dizer que na emergência não tinha ateu.

            — Tem mais milagre aqui que na Bíblia inteira.

            Era apaixonado por Jesus, pela sua humanidade, pela sua delicadeza, pelo respeito aos mais pobres quer de espirito quer de bens, pela sua compaixão. É sábado e eu com a Light, tem gente precisando milagre: eu faço. Perdoo os pecados ou curo o paralitico o que você acha mais fácil? Vai rolar uma pedra, quero ver você jogar a sua. Estão precisando de pão e peixes, ou de um bom vinho? Senhor pratiquei o aborto, não podia por mais um filho no mundo, sozinha e sem ninguém que me ajudasse. Agora que estamos os dois a sós nesta sala triste e cheirando desinfetante eu te digo: o pecado é do mundo e não teu.

            Odiava a Igreja, cheia de preconceitos e regras que não eram tiradas da vida, mas de livros e bibliotecas encardidas e cheirando a naftalina. Se estavam construindo a Igreja, como pretendia o Cristo iam demorar mais, muito mais que a Catedral da Sagrada Família em Barcelona.

            Podia andar naqueles corredores sem abrir os olhos, não precisava de luz para caminhar entre os leitos espalhados pelos corredores, sempre insuficientes, sempre precisando de curativos, sempre com aquele cheiro forte, sempre, sempre... Já dormira em camas muito parecidas com estas, sem contar as macas do Pronto-Socorro, onde você dormia a espera da entrada do próximo tiro ou do próximo enfarte. E não se vire, senão você vira paciente da ortopedia. Não conhecia nenhum caso de queda de maca e olha que fazia anos que convivia com isso.

            Podiam botar esse milagre na conta de Jesus, era dos bons e tinha a vantagem de ajudar a molecada a ter melhor disposição no resto da noite, em benefício dos que certamente viriam em busca de alivio.

            Aquilo é que era um espetáculo da fé e não a missa. Gente que não se incomodava de sujar o uniforme de receber no colo o vômito do doente ou de limpar a sujeira do leito no qual jazia o ferido que não podia ou devia ser movido. Jorge Antônio já fizera tudo aquilo junto com a enfermagem.

            Gostava de repetir:

            — No Pronto-Socorro, sua autoridade tem relação direta com sua capacidade de fazer qualquer coisa pelo doente, eu disse qualquer coisa.

            O que ele queria dizer? Era simples, não desprezo o trabalho de ninguém: enfermeira padrão, técnica de enfermagem, auxiliar de limpeza, faxineira, preciso de todo mundo, mais sei fazer e se for preciso faço o serviço de qualquer um. Não vou comer filé escondido enquanto a tropa come em pé, carne moída de segunda. O resultado era conhecido, por onde andava o respeito ia junto. Um respeito diferente que vinha de sua enorme autoridade.

            — Vocês sabem se a coisa apertar e pegar fogo de verdade eu não vou correr para o quarto nem para a sala dos médicos.

            Aliás era um lugar que ele não frequentava muito, às vezes quando a confusão baixava entrava lá. No geral detestava que seus comandados achassem que ele não podia ou não queria ser incomodado. Ali era possível vê-lo às gargalhadas contando histórias de pronto socorro como só ele sabia faze-lo. Sua especialidade eram as lusitanas, talvez pelo sangue transmontano de carga recente. Pai era de Torre de Moncorvo.

            A favorita era a do português que tinha levado o médico ao auge da loucura porque não tinha noção do que fosse colocar na entrada do anus, o que levara o doutor a ser mais explícito e usar a palavra de uso comum sobre onde enfiar o supositório ao que o luso se envergonhara e dissera:

            — Ai o doutore ficou bravo comigo.

            E tinha a variante do portuga que ao ser confrontado com o remédio que deveria ser usado na entrada do anus, informara ao seu doutore. Muito bravo:

            — O doutor vai desculpar, mas no meu caso isso ai sempre foi saída e nunca entrada.

            Todas as mulheres com quem trabalhava ou trabalhou sabiam do enorme respeito que tinha por elas e seu contínuo controle para não ser nem parecer machista. Costumava dizer que infelizmente o machismo era o normal na sociedade brasileira, uma educação mal conduzida e mal feita, empurrava nessa direção, mas era preciso vigiar sempre.

            É, mas negava-se a propagar a igualdade de gênero porque estava absolutamente convencido de que ambos os gêneros mereciam igual respeito, mas não eram iguais.

            Aprendera isso ali mesmo na enorme e fantástica escola chamada Pronto-Socorro. Você precisava saber medicina, o resto, que era importante na vida, você aprendia ali mesmo na hora, na teoria e na prática, sobretudo na prática.

            Adorava crianças, e tinha uma enorme compaixão com o sofrimento delas, mas nem de longe conseguia o mesmo gesto o mesmo carinho que uma mulher se abaixando pra chamar um menino ou menina.  A natureza tinha feito sua seleção, as mais carinhosas tinham mais filhos e criavam muito melhor esses mesmos filhos. Darwin no PS era novidade até para Pé de Valsa, o destemido enfermeiro, com trinta anos de serviço.

            Pé de Valsa tinha esse nome por causa de um andar que a medicina chamava de marcha escarvante, situação crônica que ele não queria e nem pedia qualquer tratamento. A situação se tornara permanente e originara o famoso apelido. O que chamava a atenção não era a sua marcha, mas sua intuição. Com trinta anos de porta, sabia tudo e frequentemente fazia diagnósticos só de olhar o doente e suas atitudes. Muitos achavam que ele cultivava a forma peculiar de falar.

            — É uma úrsula do diadema perfurada.

            Não dava outra, uma típica úlcera de duodeno perfurada. Ambos se conheciam fazia muito tempo e tinham um pelo outro grande respeito e amizade.
            — Doutor, chegou uma moça com hemorragia. O menino do PSO tá dormindo na maca, é judiação acordar ele.

            — Deixa para mim Ismenio. Jorge Antônio nunca usava apelido, nem quando o interessado gostava do próprio.

            PSO era abreviação de Pronto Socorro de Obstetrícia, podia chamar simplesmente Pronto Socorro de Abortos, pois era o que mais tinha, de obstetrícia mesmo, partos ou similares, as fichas eram raras, muito raras.

            A moça devia estar sofrendo muito porque encarou o médico sem muito pudor e contou-lhe claramente o que se passava. Uma hemorragia que já durava três meses, estava sentindo tonturas e já desmaiara no caminho do hospital. Traduzindo em miúdo uma menorragia uterina de longa duração que não tinha nada a ver com menstruação e que já estava comprometendo o estado geral da moça.

            Jorge Antônio decidiu pedir exames para saber o comprometimento hematológico, afinal ela perdera muito sangue ao longo desses três meses. Achou que dava para esperar antes de fazer uma transfusão, receitou plasma, soro glicosado e depois Ringer. Achou que uma injeção de estrógeno podia ajudar e preparou um encaminhamento direto para o ambulatório de ginecologia, tendo se convencido de que a moça entendera o procedimento, chamara a enfermagem e o serviço social para garantir que ela não se perdesse na burocracia.

            Despediu-se de Celene satisfeito com as medidas tomadas, afastou-se e ai caminhando começou a se lembrar daquele misterioso episódio que nos Evangelhos aparecia em dois deles com o da mulher com hemorroisa, êta palavra estranha, castelhana da gema, por que os tradutores brasileiros a usavam era para ele um profundo mistério. Lucas seu favorito falava em fluxo de sangue. Um caso de doze anos! Pobre mulher. Quanto sofrimento. E pela lei Mosaica ela era impura! Não podia tocar nada nem ser tocada ou que tocassem suas coisas. Era uma morta-viva. A medicina daquele tempo não lhe valera de nada. Transgrediu a lei, pois tocou o manto de Jesus. Este sentiu a presença dela e o toque a curou. Jesus disse-lhe apenas vai em paz. Não lhe pediu nem fez qualquer recomendação. Devolveu-lhe a dignidade e a liberou para que vivesse a vida na sua plenitude.

            Será que conseguira devolver àquela moça sua dignidade?

            Não teve tempo para responder, Pé de Valsa entrava com uma nova ficha e olhando para ele foi informando.

            — O cara se queimou fazendo o assado de Natal e ai percebeu que não tinha mais sensibilidade na mão. Pois é doutor fazia tempo que eu não via um desses. Noite de Natal cheia de Bíblia, essa não?

            Jorge Antônio sabia que Ismenio era Crente e como bom crente conhecia a Sagrada Escritura de cá para lá e de lá para cá. Estava falando de lepra, com todas as letras. Apressou-se em pegar a ficha, algum residente mais jovem podia interagir de modo desastrado num caso assim.

            Sentou-se na frente do Seu Augusto e ouviu-lhe a história que parecia saída de um livro de tão característica. O exame clínico mostrou a falta de sensibilidade na mão e o espessamento típico do nervo ulnar o famoso nervo do choque de sogra.
            Explicou, com muita paciência, qual era a doença e seu nome certo hanseníase. Infelizmente para melhor compreensão do doente teve que usar a palavra terrível: lepra. Mas, diga-se a verdade tocado pela experiência ou pelo espirito de Natal sua explicação foi fabulosa o homem se acalmou e entendeu perfeitamente que hoje em dia, sua doença não só tinha cura, como não implicava em viver sequestrado como relatado na Bíblia e gritando impuro! 

  Encaminhou-o como necessário para uma Instituição especializada, sabendo que os tempos eram outros e que tudo se resolveria muito bem.

            Daí começou a caminhar no corredor pensando Noite De Natal, mulher com fluxo de sangue, leproso, só me falta aparecer um cego.

             Quando levantou o olhar lá estava o seu enfermeiro favorito com nova ficha na mão.
            — Pois é doutor, um cego que se machucou na cerca, rasgo fundo.

            Olhou a sua volta não querendo acreditar no que ouvia, não ia passar saliva no dedo nem a porrete! O que o destino queria dele nessa noite Santa. Eu já expliquei que não sou ateu, sou um agnosticozinho sem nenhuma importância, pensava como quem procura sair da reta. Essa, no entanto procurava por ele como se fosse laser, ele tava na mira do snyper.

            Foi até a sala de curativo e olhou para o pobre Sr. Alberto, com seus olhos muito redondos e muito aflito.

            Já fazia seis anos que perdera a visão, foi duma queda em que caindo de costas batera a cabeça com força no chão. Vira um monte de estrela e depois não via mais nada. Andara em Pronto Socorro e num Instituto para cegos. Ficar cego depois de adulto era muito complicado, de repente então era castigo dobrado. Se a coisa vai devagar você se acostuma e aprende Braile enquanto ainda enxerga, mas de repente era duro.

            O que surpreendia Jorge Antônio era essa incrível aceitação da deficiência que os cegos têm. Nenhum inconformismo, nada de maldições, nada de achar que era castigo de Deus. Um humor que achava incrível. Meu Deus de onde tiravam essa força?

            Em noite de Natal ficava difícil não pensar em Jesus. Gostava de pensar em Jesus no tempo do Natal, deixava Cristo, o Ungido, o Messias para o tempo da Páscoa. Cristo era o Crucificado. As palavras não tinham nenhuma ligação etimológica, mas soavam bem juntas. Sabia grego e latim mais do que muito crente, mas não se esforçava para fazer exegese. De tudo que lera e ouvira gravara simplesmente:

            Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Achava, e estava em boa companhia, que ali estava toda lei e os profetas. 
            Pois é, diante do cego ficou pensando em Jesus e no seu currículo de oftalmologista.  Contou mentalmente e encontrou perto de meia dúzia de cegos que recuperaram a visão pelas mãos de Jesus. Dava conferência em Congresso sobre a Visão. O mais famoso era o de Jericó que tinha até nome Bartimeu. O que já se escrevera sobre o nome era quase tanto quanto o milagre. Bar, em hebraico é simples = filho de, logo Bartimeu era filho de Timeu. Timeu é um nome próprio ou é pobreza? Vai daí, tem gente que acha que a Bartimeu arrancaram os olhos quando criança.

            Não há nas Escrituras nada que corrobore esta versão. Para Jorge Antônio as curas de cegos que Jesus operou tinham tudo a ver com a existência prévia do glóbulo ocular. Nem a Deus era possível restaurar a visão sem a existência do olho.

            Tendo feito a sutura no maior capricho, sem causar nenhuma dor ou aflição ao pobre cego com quem conversava alegremente, o médico resolveu examinar sua vista. Era dos poucos, privilégio dos verdadeiramente bons médicos de pronto socorro, capaz de fazer um exame de fundo de olho.

            O que viu deixou muito intrigado. Alguém comera bola feio. Não havia nada de errado no exame. A retina, o cristalino, a córnea, a íris, tudo normal, porque Seu Alberto não enxergava?

            Sem muito alarde escreveu um laudo detalhado de encaminhamento para a Neurologia com passagem pela Oftalmologia. Sentiu uma ligeira pontada no coração, não, não era enfarte, era Natal e ele pensou, será que é mais um para o currículo de Jesus? Ser agnóstico no dia 24 de dezembro não era fácil. Aquela porcaria de cachaça do Pronto-Socorro do HC vivia tramando contra sua descrença e seu ceticismo.

            — Oi Jesus, truque miserável esse seu, é para comemorar seu aniversário? Pensou calado. Aquela intimidade com Jesus era das melhores coisas que lhe aconteciam. Ajudava muito nos momentos mais aflitos e difíceis da medicina de urgência.

            Nisso o celular tocou tirando-o de seu devaneio:

            — Já é quase meia-noite, você não vem para a ceia? Estamos todos esperando. Era a voz inconfundível de Cecilia.

            — Já vou meu amor, estou de verdade saindo pela porta. O Pé de Valsa prometeu que só me chama em caso de encrenca brava.

            Meu amor! Pensou ela pousando o telefone. Isso está parecendo mais um Milagre de Natal, e se apressou com os últimos arranjos. Milagre de Natal só acontece uma vez por ano.

O NATAL DE VALDINEI - Ledice Pereira


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O NATAL DE VALDINEI

Ledice Pereira
Chamava-se Valdinei.
Idade: seis anos.
Endereço: Rua
Isso mesmo, Rua. Morava na rua.
Mãe: viciada, vinte e um anos, moradora de rua.
Pai: desconhecido

Valdinei, menino franzino que, embora vivesse na rua, tinha uma carinha boa, olhos vivos de jabuticaba, tendo conquistado os moradores do bairro com sua simpatia e seu sorriso sempre presente.

Alimentava-se graças às doações dos bares e restaurantes da região. Apesar da pouca idade, estava sempre disposto a lavar um vidro de carro aqui, a fazer um carreto ali na feira livre que acontecia às quartas-feiras, uma forma de ganhar um trocadinho mesmo que isso não desse para nada.

O jornaleiro resolveu vesti-lo. Tinha um filho de nove e outro de onze. Quando as roupas ficavam pequenas trazia pra Valdinei. Tudo servia e ele agradecia.

─ Brigadu, tio.

Ficou tão conhecido no bairro do Itaim Bibi, em São Paulo, que todos se sentiam um pouco responsáveis por ele.

Josilene, uma jovem senhora que não tinha filhos, era a que mais se importava com ele.  Trazia sempre um doce que ela mesmo fazia e que ele comia com gosto. Ele tentava retribuir com pequenas gentilezas como dar-lhe uma flor apanhada na praça onde muitas vezes dormia.

─ Valeu, tia.

Na época de frio, o recolhiam no saguão de um prédio e lhe davam colchonetes, cobertores e o deixavam passar as noites frias.

Elizabeth, professora da Escola Municipal da região sentiu-se na obrigação de trazê-lo para a escola. Conversou com o diretor e acabou convencendo-o a deixar o menino frequentar as aulas já que ele logo faria sete anos.

Conversou com os moradores da região. Um comprou o uniforme, o outro o material, providenciaram documentos já que ele tinha uma certidão de nascimento que ninguém sabe como não sumiu. E Valdinei foi matriculado.

O garoto estava radiante. Sempre tivera vontade de fazer amizade com a meninada que voltava da escola mas ninguém nunca olhara para ele.

Na escola havia a merenda e ele adorava tudo que ofereciam. Gostava de brincar e se destacava nos jogos que os professores organizavam.

Na classe, sua vontade de aprender surpreendeu a professora. Tentava desenhar as letras com capricho e logo estava juntando sílabas e formando palavras.

Fazia contas desde pequeno, do jeito dele, então tirou de letra os números e as primeiras operações.

O progresso de Valdinei e seu jeito de ser, seu comportamento e sua gratidão a todos que o ajudaram fizeram com que Josilene convencesse seu marido a lutar pela adoção do menino.

Inicialmente, Jorge relutou em aceitar mas começou a observá-lo e sentiu que realmente devia pensar no assunto.

Consultaram advogados e chegaram à Vara da Infância e da Juventude para se inscreverem na fila de adoção. Explicaram ao Juiz que gostariam de adotar um menino de rua que já conheciam.

Depois de enfrentarem os trâmites necessários, faltando uns dias para o mês dezembro daquele ano, foram chamados pelo Juiz para que trouxessem Valdinei a fim de que fosse entrevistado. O juiz precisava ter certeza se essa era a vontade dele também, uma vez que a mãe verdadeira não foi localizada, apesar dos esforços das Assistentes Sociais.  Tanto o casal, como o garoto, teriam que passar por um período de experiência.

Valdinei, que a princípio se sentiu apreensivo, ao saber da intenção de Josilene e Jorge, ficou tão feliz e agradecido que disse ao juiz que não poderia receber melhor presente do que aquele, ainda mais no mês de dezembro, pois em toda sua vida nunca recebera um presente de Natal.

Essa não é uma história de Natal, mas poderia servir de exemplo para que tantas crianças, que vivem pelas ruas, sejam enxergadas com possibilidade de terem um lar, amor, atenção e chance de estudarem e poderem se tornar cidadãos.

Não podemos fechar os olhos para essa realidade tão presente em nossas cidades.